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Sales, de Machado de Assis
AO CERTO, não se pode saber em que data teve Sales a sua primeira idéia. Sabe-se
que, aos dezenove anos, em 1854, planeou transferir a capital do Brasil para o interior, e
formulou alguma cousa a tal respeito; mas não se pode afirmar, com segurança, que tal
fosse a primeira nem a segunda idéia do nosso homem. Atribuíram-lhe meia dúzia antes
dessa, algumas evidentemente apócrifas, por desmentirem dos anos em flor, mas outras
possíveis e engenhosas. Geralmente eram concepções vastas, brilhantes, inopináveis ou
só complicadas. Cortava largo, sem poupar pano nem tesoura; e, quaisquer que fossem
as objeções práticas, a imaginação estendia-lhe sempre um véu magnífico sobre o áspero
e o aspérrimo. Ousaria tudo: pegaria de uma enxada ou de um cetro, se preciso fosse,
para pôr qualquer idéia a caminho. Não digo cumpri-la, que é outra cousa.
Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de
Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro
genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um
mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu
expor os lineamentos principais da idéia.
— Havemos de falar nisso outra vez, disse Melchior; por que não vai ao nosso
engenho?
Sales foi ao engenho, conversou, escreveu, calculou, fascinou o homem. Uma vez
acordados na idéia, saiu o moço a propagá-la por toda a comarca; achou tímidos, achou
recalcitrantes, mas foi animando a uns e persuadindo a outros. Estudou a produção da
zona, comparou a real à provável, e mostrou a diferença. Vivia no meio de mapas,
cotações de preços, estatísticas, livros, cartas, muitas cartas. Ao cabo de quatro meses,
adoeceu; o médico achou que a moléstia era filha do excesso de trabalho cerebral, e
prescreveu-lhe grandes cautelas.
Foi por esse tempo que a filha do senhor do engenho e uma irmã deste regressaram da
Europa, aonde tinham ido nos meados de 1858. Es liegen einige gute Ideen in diesen
Rock, dizia uma vez o alfaiate de Heine, mirando-lhe a sobrecasaca. Sales não desceria a
achar semelhantes cousas numa sobrecasaca; mas, numa linda moça, por que não? Há
nesta pequena algumas idéias boas, pensou ele olhando para Olegária — ou Legazinha,
como se dizia no engenho. A moça era baixota, delgada, rosto alegre e bom. A influição
foi recíproca e súbita. Melchior, não menos namorado do rapaz que a filha, não hesitou
em casá-los; ligá-lo à família era assegurar a persistência de Sales na execução do plano.
O casamento fez-se em agosto, indo os noivos passar a lua-de-mel no Recife. No fim
de dous meses, não voltando eles ao engenho, e acumulando-se ali uma infinidade de
respostas ao questionário que Sales organizara, e muitos outros papéis e opúsculos,
Melchior escreveu ao genro que viesse; Sales respondeu que sim, mas que antes disso
precisava dar uma chegadinha ao Rio de Janeiro, cousa de poucas semanas, dous
meses, no máximo. Melchior correu ao Recife para impedir a viagem; em último caso,
prometeu que, se esperassem até maio, ele viria também. Tudo foi inútil; Sales não podia
esperar; tinha isto, tinha aquilo, era indispensável.
— Se houver necessidade de apressar a volta, escreva-me; mas descanse, a boa
semente frutificará. Caiu em boa terra, concluiu enfaticamente.
Ênfase não exclui sinceridade. Sales era sincero, mas uma cousa é sê-lo de espírito,
outra de vontade. A vontade estava agora na jovem consorte. Entrando no mar,
esqueceu-lhe a terra; descendo à terra, olvidou as águas. A ocupação única do seu ser
era amar esta moça, que ele nem sabia que existisse, quando foi para o engenho do
sogro cuidar do açúcar. Meteram-se na Tijuca, em casa que era juntamente ninho e
fortaleza; — ninho para eles, fortaleza para os estranhos, aliás inimigos. Vinham abaixo
algumas vezes — ou a passeio, ou ao teatro; visitas raras e de cartão. Durou essa
reclusão oito meses. Melchior escrevia ao genro que voltasse, que era tempo; ele
respondia que sim, e ia ficando; começou a responder tarde, e acabou falando de outras
cousas. Um dia, o sogro mandou-lhe dizer que todos os apalavrados tinham desistido da
empresa. Sales leu a carta ao pé de Legazinha, e ficou longo tempo a olhar para ela.
— Que mais? perguntou Legazinha.
Sales afirmou a vista; acabava de descobrir-lhe um cabelinho branco. Cãs aos vinte
anos! Inclinou-se, e deu no cabelo um beijo de boas-vindas. Não cuidou de outra cousa
em todo o dia. Chamava-lhe "minha velha". Falava em comprar uma medalhinha de prata
para guardar o cabelo, com a data, e só a abririam quando fizessem vinte e cinco anos de
casados. Era uma idéia nova esse cabelo. Bem dizia ele que a moça tinha em si algumas
idéias boas, como a sobrecasaca de Heine; não só as tinha boas, mas inesperadas.
Um dia, reparou Legazinha que os olhos do marido andavam dispersos no ar, ou
recolhidos em si. Nos dias seguintes observou a mesma cousa. Note-se que não eram
olhos de qualquer. Tinham a cor indefinível, entre castanho e ouro; — grandes, luminosos
e até quentes. Viviam em geral como os de toda a gente; e, para ela, como os de
nenhuma pessoa, mas o fenômeno daqueles dias era novo e singular. Iam da profunda
imobilidade à mobilidade súbita e quase demente. Legazinha falava-lhe, sem que ele a
ouvisse; pegava-lhe dos ombros ou das mãos, e ele acordava.
— Hem? que foi?
Legazinha a princípio ria-se.
— Este meu marido! Este meu marido! Onde anda você?
Sales ria também, levantava-se, acendia um charuto, e entrava a andar e a pensar; daí
a pouco mergulhava outra vez em si. O fenômeno foi-se agravando. Sales passou a
escrever horas e horas; às vezes, deixava a cama, alta noite, para ir tomar alguma nota.
Legazinha supôs que era o negócio dos engenhos, e disse-lho, pendurando-se
graciosamente do ombro:
— Os engenhos? repetiu ele. E voltando a si: — Ah! os engenhos...
Legazinha temia algum transtorno mental, e procurava distraí-lo. Já saíam a visitas,
recebiam outras; Sales consentiu em ir a um baile, na Praia do Flamengo. Foi aí que ele
teve um princípio de reputação epigramática, por uma resposta que deu distraidamente:
— Que idade terá aquela feiosa, que vai casar? perguntou-lhe uma senhora com
malignidade.
— Perto de duzentos contos, respondeu Sales.
Era um cálculo que estava fazendo; mas o dito foi tomado à má parte, andou de boca
em boca, e muita gente redobrou os carinhos com um homem capaz de dizer cousas tão
perversas.
Um dia, o estado dos olhos foi cedendo inteiramente da imobilidade para a mobilidade;
entraram a rir, a derramarem-se-lhe pelo corpo todo, e a boca ria, as mãos riam, todo ele
ria a espáduas despregadas. Não tardou, porém, o equilíbrio: Sales voltou ao ponto
central, mas — ai dela! — trazia uma idéia nova.
Consistia esta em obter de cada habitante da capital uma contribuição de quarenta réis
por mês — ou, anualmente, quatrocentos e oitenta réis. Em troca desta pensão tão
módica, receberia o contribuinte durante a Semana Santa uma cousa que não posso dizer
sem grandes refolhos de linguagem. Que como ele há pessoas neste mundo que acham
mais delicado comer peixe cozido, que lê-lo impresso. Pois era o pescado necessário à
abstinência, que cada contribuinte receberia em casa durante a semana santa, a troco de
quatrocentos e oitenta réis por ano. O corretor, a quem Sales confiou o plano, não o
entendeu logo; mas o inventor explicou-lho.
— Nem todos pagarão só os quarenta réis; uma terça parte, para receber maior porção
e melhor peixe, pagará cem réis. Quantos habitantes haverá no Rio de Janeiro?
Descontando os judeus, os protestantes, os mendigos, os vagabundos, etc., contemos
trezentos mil. Dous terços, ou duzentos mil, a quarenta réis, são noventa e seis contos
anuais. Os cem mil restantes, a cem réis, dão cento e vinte. Total: duzentos e dezesseis
contos de réis. Compreendeu agora?
— Sim, mas...
Sales explicou o resto. O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era
uma companhia anônima, número das ações, entradas dividendo provável, fundo de
reserva, tudo estava calculado, somado. Os algarismos caíam-lhe da boca, lúcidos e
grossos, como uma chuva de diamantes; outros saltavam-lhe dos olhos, à guisa de
lágrimas, mas lágrimas de gozo único. Eram centenas de contos, que ele sacolejava nas
algibeiras, passava às mãos e atirava ao teto. Contos sobre contos; dava com eles na
cara do corretor, em cheio; repelia-os de si, a pontapés; depois recolhia-os com amor. Já
não eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de algarismos, que torcia todas as
idéias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem.
— E as despesas? disse este.
Estavam previstas as despesas. As do primeiro ano é que seriam grandes. A
companhia teria virtualmente o privilégio da pescaria, com pessoal seu, canoas suas,
estações de paróquias, carroças de distribuição, impressos, licenças, escritório, diretoria,
tudo. Deduzia as despesas, e mostrava lucro positivo, claro, numeroso. Vasto negócio,
vasto e humano; arrancava a população aos preços fabulosos daqueles dias de preceito.
Trataram do negócio; apalavraram algumas pessoas. Sales não olhava a despesa para
pôr a idéia a caminho. Não tinha mais que o dote da mulher, uns oitenta contos, já muito
cerceados; mas não olhava a nada. São despesas produtivas, dizia a si mesmo. Era
preciso escritório; alugou casa na Rua da Alfândega, dando grossas luvas, e meteu lá um
empregado de escrita e um porteiro fardado. Os botões da farda do porteiro eram de
metal branco, e tinham, em relevo, um anzol e uma rede, emblema da companhia; na
frente do bonnet via-se o mesmo emblema, feito de galão de prata. Essa particularidade,
tão estranha ao comércio, causou algum pasmo, e recolheu boa soma de acionistas.
— Lá vai o negócio a caminho! dizia ele à mulher, esfregando as mãos.
Legazinha padecia calada. A orelha da necessidade começava a aparecer por trás da
porta; não tardaria a ver-lhe o carão chupado e lívido, e o corpo em frangalhos. O dote,
capital único, ia-se indo com o necessário e o hipotético. Sales, entretanto, não parava,
acudia a tudo, à praça e à imprensa, onde escreveu alguns artigos longos, muito longos,
pecuniariamente longos, recheados de Cobden e Bastiat, para demonstrar que a
companhia trazia nas mãos "o lábaro da liberdade".
A doença de um conselheiro de Estado fez demorar os estatutos. Sales, impaciente
nos primeiros dias, entrou a conformar-se com as circunstâncias, e até a sair menos. Às
vezes vestia-se para dar uma vista ao escritório; mas, apertado o colete, ruminava outra
cousa e deixava-se ficar. Crendice do amor, a mulher também esperava os estatutos;
rezava uma ave-maria, todas as noites, para que eles viessem, que se não demorassem
muito. Vieram; ela leu, um dia de manhã, o despacho de indeferimento. Correu atônita ao
marido.
— Não entendem disto, respondeu Sales, tranqüilamente. Descansa; não me abato
assim com duas razões.
Legazinha enxugou os olhos.
— Vais requerer outra vez? perguntou-lhe.
— Qual requerer!
Sales atirou a folha ao chão, levantou-se da rede em que estava, e foi à mulher; pegoulhe nas mãos, disse-lhe que nem cem governos o fariam desfalecer. A mulher, abanando
a cabeça:
— Você não acaba nada. Cansa-se à toa... No princípio tudo são prodígios; depois...
Olha o negócio dos engenhos que papai me contou...
— Mas fui eu que me indeferi?
— Não foi; mas há que tempos anda você pensando em outra cousa!
— Pois sim, e digo-te...
— Não digas nada, não quero saber nada, atalhou ela.
Sales, rindo, disse-lhe que ainda havia de arrepender-se, mas que ele lhe daria um
perdão "de rendas", nova espécie de perdão, mais eficaz que nenhum outro. Desfez-se
do escritório e dos empregados, sem tristeza; chegou a esquecer-se de pedir luvas ao
novo inquilino da casa. Pensava em cousa diferente. Cálculos passados, esperanças
ainda recentes, eram cousas em que parecia não haver cuidado nunca. Debruçava-se-lhe
do olho luminoso uma idéia nova. Uma noite, estando em passeio com a mulher, confioulhe que era indispensável ir à Europa, viagem de seis meses apenas. Iriam ambos, com
economia... Legazinha ficou fulminada. Em casa respondeu-lhe, que nem ela iria, nem
consentiria que ele fosse. Para quê? Algum novo sonho. Sales afirmou-lhe que era uma
simples viagem de estudo, França, Inglaterra, Bélgica, a indústria das rendas. Uma
grande fábrica de rendas; o Brasil dando malinas e bruxelas.
Não houve força que o detivesse, nem súplicas, nem lágrimas, nem ameaças de
separação. As ameaças eram de boca. Melchior estava, desde muito, brigado com
ambos; ela não abandonaria o marido. Sales embarcou, e não sem custo, porque amava
deveras a mulher; mas era preciso, e embarcou. Em vez de seis meses, demorou-se sete;
mas, em compensação, quando chegou, trazia o olhar seguro e radiante. A saudade,
grande misericordiosa, fez com que a mulher esquecesse tantas desconsolações, e lhe
perdoasse — tudo.
Poucos dias depois alcançou ele uma audiência do ministro do Império. Levou-lhe um
plano soberbo, nada menos que arrasar os prédios do Campo da Aclamação e substituílos por edifícios públicos, de mármore. Onde está o quartel, ficaria o palácio da
Assembléia Geral; na face oposta, em toda a extensão, o palácio do imperador. David
cum Sibyla. Nas outras duas faces laterais ficariam os palácios dos sete ministérios, um
para a Câmara Municipal e outro para o Diocesano.
— Repare V. Excia. que é toda a Constituição reunida, dizia ele rindo, para fazer rir o
ministro; falta só o Ato Adicional. As províncias que façam o mesmo.
Mas o ministro não se ria. Olhava para os planos desenrolados na mesa, feitos por um
engenheiro belga, pedia explicações para dizer alguma cousa, e mais nada. Afinal disselhe que o governo não tinha recursos para obras tão gigantescas.
— Nem eu lhos peço, acudiu Sales. Não preciso mais que de algumas concessões
importantes. E o que não concederá o governo para ver executar este primor?
Durou seis meses esta idéia. Veio outra, que durou oito; foi um colégio, em que pôs à
prova certo plano de estudos. Depois vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava
alguma cousa, e o dote da mulher desapareceu. Legazinha suportou com alma as
necessidades; fazia balas e compotas par manter a casa. Entre duas idéias, Sales
comovia-se, pedia perdão à consorte, e tentava ajudá-la na indústria doméstica. Chegou a
arranjar um emprego ínfimo, no comércio; mas a imaginação vinha muita vez arrancá-lo
ao solo triste e nu para as regiões magníficas, ao som dos guizos de algarismos e do
tambor da celebridade.
Assim correram os primeiros seis anos de casamento. Começando o sétimo, foi o
nosso amigo acometido de uma lesão cardíaca e de uma idéia. Cuidou logo desta, que
era uma máquina de guerra para destruir Humaitá; mas a doença, máquina eterna,
destruiu-o primeiro a ele. Sales caiu de cama, a morte veio vindo; a mulher, desenganada,
tratou de o persuadir a que se sacramentasse.
— Faço o que quiseres, respondeu ele ofegante.
Confessou-se, recebeu o viático e foi ungido. Para o fim, o aparelho eclesiástico, as
cerimônias, as pessoas ajoelhadas, ainda lhe deram rebate à imaginação. A idéia de
fundar uma igreja, quando sarasse, encheu-lhe o semblante de uma luz extraordinária. Os
olhos reviveram. Vagamente, inventou um culto, sacerdote, milhares de fiéis. Teve
reminiscências de Robespierre; faria um culto deísta, com cerimônias e festas originais,
risonhas como o nosso céu... Murmurava palavras pias.
— Que é? dizia Legazinha, ao pé da cama, com uma das mãos dele presa entre as
suas, exausta de trabalho.
Sales não via nem ouvia a mulher. Via um campo vastíssimo, um grande altar ao longe,
de mármore, coberto de folhagens e flores. O sol batia em cheio na congregação
religiosa. Ao pé do altar via-se a si mesmo, magno sacerdote, com uma túnica de linho e
cabeção de púrpura. Diante dele, ajoelhadas, milhares e milhares de criaturas humanas,
com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia...
distribuir...
Corpora
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