Open in Voyant Tools
Full Text
Anedota do cabiolet *
- Cabriolet está aí, sim, senhor - dizia
o preto que viera à
matriz de São José chamar o vigário para sacramentar dous moribundos.
A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no
Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o
cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou
pouco. O tilbury, anterior aos dois, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o
cocheiro em ossos, esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia, maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a
própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá cousas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer.
- Dous! - exclamou o sacristão.
- Sim, senhor, dous; nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! - continuou o preto a gemer, andando de um lado para
outro, aflito, fora de si.
Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do
sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história
terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntavam nada.
Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos
maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o
comportamento das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo; nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba
e grisalho, magro e meão.
"Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?", dizia consigo, acompanhando o coadjutor.
Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força
mostrar o mesmo silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolet esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes
ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela
rua da Misericórdia. O preto desandou o caminho a passo largo.
Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca de
Nosso-Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era
acerca da hora - oito e quarto da noite -, aliás, o céu estava claro e a lua ia aparecendo. O próprio cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste
caso a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.
"Há de ser gente nova", ia pensando o sacristão, "mas hóspeda em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na praia, e o número é da do
comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi...? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam
cabriolet? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos."
Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O cabriolet parou à porta de um sobrado, justamente a casa do
comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada, acompanhados
do comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os dous
moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo.
Tudo se passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da
casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dous eram parentes seus. Não, não
eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em
Campinas; uma história terrível... Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente
estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto - talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele.
Foi tão curta a moda do cabriolet que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma
anedota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a
despir a sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador.
Em caminho foi evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda. Compôs o negócio, que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas
dadas, os cargos paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou dous. A grande memória de João das Mercês guardava
todas as cousas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como o
padre-nosso, isto é, sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe
saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar três dúzias de padre-nossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava
sabê-las, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.
Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a
vida de Antônio e Antônio, a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dous com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com
todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de
lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota, que então revivia por instantes, era
como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia mais do que ele
pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa; era um dos seus atos de viver.
Quando chegou à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que
fosse a ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo
estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se de saber se os
enfermos tinham ido para o céu - ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse.
- Não morreram, nem sei se escaparão; quando menos, ela, creio que morrerá -concluiu Brito.
- Parecem bem mal.
- Ela, principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias.
- Já estavam aqui? - perguntou o sacristão, pasmado de o não saber.
- Já; chegaram há quinze dias - ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença...
Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a
morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia
consigo que havia alguma cousa mais que febre. A primeira ideia que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio; também pensou que podia ser outro
mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os
passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era cousa
nenhuma para quem tivesse outro cuidado; mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual
estado, alguma página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia.
- Ah! - exclamou Brito estacando o passo.
Parecia haver nele o desejo impaciente de referir um caso - a "história terrível", que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem
aquele, dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.
João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu
sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço.
- Triste, sim, triste - concordou João das Mercês -. Boas pessoas, não?
- Iam casar.
- Casar? Noivos um do outro?
Brito confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que
era a primeira vez que ouvia alguma cousa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco, eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso
se sentia menos curioso. Iam casar... Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser
terrível. Noivos e moribundos...
Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá
ficou cinquenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o comendador.
- Que lhe dizia eu, há pouco? Quando menos, ela ia morrer; morreu.
Brito disse isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de
Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em
Mata-porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador gostasse da noiva do moribundo foi um
instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a ideia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara... Talvez fosse padrinho
de casamento. Quis saber, e era natural, o nome da defunta. O dono da casa - ou por não querer dar-lho, ou porque outra ideia lhe tomasse agora a cabeça - não declarou o
nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam.
- Iam casar...
- Deus a receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar - disse o sacristão cheio de melancolia.
E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês
lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou à janela, e o pedido que lhe fez de jurar - jurou por todas as almas dos seus que
ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas, como era o
comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dous
noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável...
- E foi...? - precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador.
- Que eram irmãos.
- Irmãos como? Irmãos de verdade?
- De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que
era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais...
João das Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria
todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da paróquia.
- E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou...?
Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora
depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais franco, posto que mais esperado, não havendo
já de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão.
- Lá se foi o outro, o irmão, o noivo... Que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam
tanto que, alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem
apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um
cabriolet e fugiram de casa. Dado logo o alarma, alcançamos pegar o cabriolet em caminho da
Cidade Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer.
Não se pode escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade. Soube os nomes das
pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se ter por indiscreto, espalhou
a história, só com esconder os nomes e contá-la a um amigo, que a passou a outro, este, a outros, e todos, a todos. Fez mais; meteu-se-lhe em
cabeça que o cabriolet da fuga podia ser o mesmo dos últimos sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e
descobriu que sim. Donde veio chamar-se a esta página a "anedota do cabriolet".
Várias histórias
VÁRIAS HISTÓRIAS
Machado de Assis
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Várias histórias é o quinto livro de contos de Machado de Assis e foi publicado em 1896, quando o autor estava no auge de sua carreira literária, já tendo oferecido aos leitores dois de seus maiores romances: Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Ao publicar na imprensa, entre julho de 1884 e outubro de 1891, os contos que viriam a compor o livro, estava ao mesmo tempo trabalhando em Quincas Borba, que apareceu esparsamente em A Estação, ao longo de pouco mais de cinco anos (entre junho de 1886 e setembro de 1891) e, logo depois, em novembro de 1891, em volume, pela editora de B.L. Garnier.
O leitor, portanto, ao iniciar a leitura dos contos aqui reunidos, sabe de antemão que vai encontrar matéria ficcional de um escritor maduro, no pleno domínio de seu material de trabalho (a língua portuguesa) e no pleno domínio do gênero (o conto), no qual estreara trinta anos antes, com Contos fluminenses (1869).
O livro reúne 16 contos, obras primas dignas do mestre da ficção que é Machado de Assis, dos quais muitos figuram em nove entre dez antologias de contos machadianos. É o caso de "Um apólogo", para muitos brasileiros o primeiro contato com a obra de Machado. Na sua aparente simplicidade, o conto toca numa sensível questão social: para que alguém brilhe nos salões, é preciso sempre que outro alguém trabalhe na sombra e no anonimato. Outro conto frequente nas antologias é a peça de abertura do livro, "A cartomante", em que o ceticismo do autor é apresentado ao leitor de forma dramática (isto é, "em ação"), num estilo a que não falta a ironia - a mais sutil das manifestações do espírito cômico. "Entre santos", na divertida iconoclastia com que o autor faz os santos da igreja de São Francisco de Paula descerem dos seus altares para discutirem entre si as fraquezas dos homens, toca em questões que perpassam toda a boa ficção machadiana, como a avareza e o adultério. Em "Uns braços" Machado trata da atração entre um jovem ainda imberbe e uma mulher madura, e parece ensaiar para "Missa do galo", conto publicado na imprensa em 1894 e que viria a integrar a coletânea seguinte, Páginas recolhidas (1899).
"Um homem célebre" flagra a angústia da criação, tema a que Machado de Assis já se dedicara em "Cantiga de esponsais", de Histórias sem data, publicado em 1884, irmanando o célebre Pestana, compositor de polcas, ao pobre padre Romão do livro anterior, ambos desesperados diante do abismo entre a obra almejada e a obra criada, ou do conflito entre a vocação e o talento, de que havia tratado em "Habilidoso", conto publicado por Machado na Gazeta de Notícias em 1885 e jamais incluído pelo autor em coletâneas. Só que, neste, não se trata de um músico, mas de um pintor, cuja "obstinação, filha de um desejo, não correspondia às faculdades". Em "O diplomático", Machado também aborda o tema da distância entre intenção e gesto, o ficar aquém do desejo e do sonho, a frustração (no caso, amorosa) de uma personagem que, amando em segredo a uma moça bem mais jovem, custa tanto a ter coragem de declarar-se, que a vê arrebatada, numa noite, por um recém-chegado que lhe conquista o coração com a ousadia que ele, Rangel, fora incapaz de ter.
"A desejada das gentes" conta a história de Quintília, mais uma das misteriosas mulheres de Machado, que se recusa à felicidade conjugal embora ame o noivo, uma espécie de versão mais sofisticada e complexa da Maria Regina de "Trio em lá menor". Em sua recusa do corpo, lembra também, o "José Matias" (1897) de Eça de Queirós, eterno apaixonado pela mulher com quem, no entanto, não dá o passo necessário para casar-se. Maria Regina também foge ao casamento (pelo menos no momento em que a flagra a narrativa) e hesita insoluvelmente entre dois namorados, prenunciando a Flora de Esaú e Jacó (1904). De natureza igualmente misteriosa é a personagem-título de "Mariana", absolutamente indiferente ao amante que a vem visitar dezoito anos depois de terem vivido uma paixão adúltera e ardente, deixando perplexo o rapaz, que simplesmente não consegue entender o desvelo com que a mulher cuida do marido enfermo e o desespero com que reage à sua morte - marido este a quem traíra audaciosamente na juventude. De resto, comportamento análogo será o de Maria Cora, personagem do conto de mesmo nome, que sairia em Relíquias de casa velha, de 1906. "Dona Paula" é outra mulher machadiana (e são tantas!) cuja ação exterior generosa esconde uma motivação interior egoísta: ao mesmo tempo em que apoia a sobrinha, que passa por um momento delicado de sua vida afetiva, vive vicariamente a paixão extraconjugal da jovem, através de cuja narrativa revive um lance de sua própria juventude.
Rara na ficção machadiana, a infância (outro exemplo está em "Umas férias", publicado em Relíquias de casa velha), é o tema de "Conto de escola". A história do menino que vende seu saber ao colega menos inteligente e é delatado por um terceiro fica para sempre na memória do leitor e, para alguns de seus biógrafos, a escola do conto e suas redondezas são as do próprio Machado menino, no morro do Livramento.
"A causa secreta" e "O enfermeiro", embora muito diferentes entre si quanto ao enredo e mesmo quanto à complexidade psicológica das suas personagens principais (Fortunato, no primeiro, e Procópio, no segundo) têm uma afinidade inegável, na ausculta do sadismo, praticado por um em relação a animais e a seres humanos, e sofrido pelo outro nas mãos de um patrão velho e doente, que o maltrata e humilha.
Em "Adão e Eva", o juiz de fora Veloso conta a seu modo a criação do mundo e dos homens: não Deus, mas o diabo os criou, e só mais tarde Deus interveio e "infundiu em ambos os
bons sentimentos". Assim, resistiram à tentação da serpente e viveram no Éden para sempre. Cá fora, a terra ficou entregue "às obras do Tinhoso [...] ao ar impuro, à vida dos
pântanos". Como assinala Hélio de Seixas Guimarães, "[e]essa é, em linhas gerais, a história, contada com um cinismo feito
para não enganar ninguém".
"Viver!" pertence à categoria dos chamados contos alegóricos de Machado, no qual mistura numa única narrativa as mitologias clássica e judaico-cristã, pondo a conversar o titã Prometeu, ladrão do fogo celeste (com o qual deu a inteligência aos homens), e Ahasverus, o judeu errante condenado a viver para sempre, sem remissão. Finalmente, em "O cônego ou metafísica do estilo", divertida incursão no reino da metalinguagem, o narrador, invocando reiteradamente o leitor, transporta-o para dentro da cabeça de um padre no processo de composição de um sermão importante, revelando-nos o zelo com que escreve, a busca ingente da palavra perfeita - que seria, arriscamos, comparável à do próprio autor.
Ao fazer uma apresentação geral dos contos deste volume, pensamos ter demonstrado a ideia que Silviano Santiago expressou há quase cinquenta anos: deve-se
pensar "a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado", em estruturas que "se desarticulam e rearticulam sob forma de
estruturas diferentes". Os contos de Várias histórias são uma evidência disso.
***
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, bem como com a publicada pela editora Garnier, com texto estabelecido por Adriano da Gama Kury, em 1989. Em caso de discrepância, foram consultadas a primeira e a segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está na primeira edição: "calefrio" (e não "calafrio"), "cálix" (e não "cálice"), "espeitorar" (e não "expectorar"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "dous" (mais frequente) e "dois", entre "cousa" (mais frequente) e "coisa", entre "doido" e "doudo" ("doudo" com apenas uma ocorrência, no conto "Mariana") e entre "noite" e "noute" ("noute" com apenas uma ocorrência, no conto "O enfermeiro"). Também foi preservada a utilização oscilante entre "até o" e "até ao", sendo mais frequente esta última forma, de dupla preposição, como é até hoje usual em Portugal. Respeitou-se também a alternância entre "em todo caso" e "em todo o caso". Mantiveram-se o advérbio flexionado ("meia mãe", "meia amiga", "meia defunta", "meia aberta"), bem como o uso de indicativo depois de "talvez": "Talvez a ideia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono". Há ainda o emprego alternado de indicativo e subjuntivo seguindo a expressão "onde que quer que", que foi preservada: "Onde quer que o zelo penetrou" e, pouco abaixo (no conto "Viver!"): "onde quer que respirasse um homem". Não foram "corrigidos" empregos peculiares como "era uma moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração" ("Conto de escola"), corrigida às vezes para "tal moeda", como na edição Aguilar e na de Kury. Assim se procedeu por percebermos no substantivo "moeda" precedido do advérbio "tão", uma intenção de emprego do substantivo em função adjetiva, o que quebra a expectativa do leitor e, por isso, enriquece estilisticamente a frase.
Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos (Guerra do Paraguai, Regência), bem como para instituições ("Secretaria de Estrangeiros", "Escola de Medicina"). Preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "tylbury" (e não "tílbury"), "reporter" (e não "repórter"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma por extenso, tal como figuram nas primeiras edições. Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: o verbo "amuar" no sentido de "guardar, trancar dinheiro, pedras preciosas etc."; ou "trastes" no sentido de "móveis" e não no de artigos de pouco valor; ou "golpe" no sentido de "gole", "sombra" no sentido de "espectro", "espírito", "fantasma".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão". Nas orações iniciadas com "e" cujo sujeito é diferente do da oração anterior, respeitou-se a ausência da vírgula: "o cão ficava ganindo e ele ia andando". Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "Instou tanto que fiquei" e "mas instaram tanto, que aceitou". Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, como em "grande é o desconsolo e certa, a blasfêmia", mesmo porque, às vezes o autor a emprega. Em "O dicionário", deixamos vírgula separando sujeito de predicado em "quem vê um, vê outro..." por identificar aí uma pausa típica da oralidade.
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Mas, nos contos em que há um narrador de primeira pessoa relatando a alguém uma história do passado, respeitou-se o emprego de travessão, em meio de parágrafo, antecedendo a fala de uma personagem dessa história do passado (como "A desejada das gentes" ou "O empréstimo"); nos demais, sempre que havia um diálogo, abrimos parágrafo, com travessão, mesmo quando, nas edições anteriores o travessão está no meio do mesmo parágrafo. Fizemos isso autorizadas pelo procedimento do autor em demais passagens de diferentes contos, o que nos leva a crer que a disposição do diálogo dentro do parágrafo tenha sido antes erro tipográfico que decisão autoral.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq
março de 2013
Advertência
Mon ami, faisons toujours des contes...Le temps se passe, et le conte de la vie s`acheve sans qu`on s`en aperçoive.
Diderot
As várias histórias que formam este volume foram escolhidas entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às suas
trezentas páginas. É a quinta coleção que dou ao público. As palavras de
Diderot que vão por epígrafe no rosto desta coleção servem de desculpa
aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo.
Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é
naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.
M.de A.
Corpora
Download Full Text
Download anedotadocabiolet.txt