Trina e uma

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Trina e una, de Machado de Assis
A primeira coisa que há de espantar o leitor é o título, que lhe anuncia (posso dizê-lo
desde já) três mulheres e uma só mulher. Há dois modos de explicar uma tal anomalia: —
ou duas mulheres entram no conto indiretamente, são apenas citadas, e puxam os
cordéis da ação do outro lado da página — ou as mulheres não passam de três
gradações, três estados sucessivos da mesma pessoa. São os dois modos aparentes de
definir o título, e, entretanto, não é nenhum deles, mas um terceiro, que eu guardo
comigo, não para aguçar a curiosidade, mas porque não há analisá-lo sem expor o
assunto.
Vou expor o assunto. Comecemos por ela, a mulher una e trina. Está sentada numa loja,
à rua da Quitanda, ao pé do balcão, onde há cinco ou seis caixas de rendas abertas e
derramadas. Não escolhe nada, espera que o caixeiro lhe traga mais rendas, e olha para
fora, para as pedras da rua, não para as pessoas que passam. Veste de preto, e o busto
fica-lhe bem, assim comprimido na seda, e ornado de rendas finas e vidrilhos. Abana-se
por distração; talvez olhe também por distração. Mas, seja ou não assim, abana-se e olha.
Uma ou outra vez, recolhe a vista para dentro da loja, e percorre os demais balcões onde
se acham senhoras que também escolhem, conversam e compram; mas é difícil ver nos
movimentos da dama a menor sombra de interesse ou curiosidade. Os olhos vão de um
lado a outro, e a cabeça atrás deles, sem ânimo nem vida, e depois aos desenhos do
leque. Ela examina bem os desenhos, como se fossem novos, levanta-os, desce-os,
fecha as varetas uma por uma, torna a abri-las, fecha-as de todo e bate com o leque no
joelho. Que o leitor se não enfastie com tais minúcias; não há aí uma só palavra que não
seja necessária.
— Aqui estão estas que me parece que hão de agradar, disse o caixeiro voltando.
A senhora pega das novas rendas, examina-as com vagar, quase digo com preguiça.
Pega delas entre os dedos, fitando-lhes muito os olhos; depois procura a melhor luz;
depois compara-as às outras, durante um largo prazo. O caixeiro acompanha-lhe os
movimentos, ajuda-a, sem impaciência, porque sabe que ela há de gastar muito tempo, e
acabar comprando. É freguesa da casa. Vem muitas vezes estar ali uma, duas horas, e
às vezes mais. Hoje, por exemplo, entrou às duas horas e meia; são três horas dadas, e
ela já comprou duas peças de fita; é alguma coisa, podia não ter escolhido nada.
— Os desenhos não são feios, disse ela; mas não haverá outros?
— Vou ver.
— Olhe, desta mesma largura.
Enquanto o caixeiro vai ver, ela passa as outras pelos olhos, distraidamente, recomeça a
abanar-se, e afinal torna a cravar os olhos nas pedras da rua. As pedras é que não
podem querer-lhe mal, porque os olhos são lindos, e o que está escondido dentro, como
dizia Salomão, não parece menos lindo. São também claros, e movem-se por baixo de
uma testa olímpica. Para avaliar o amor daqueles olhos às pedras da rua, é preciso
considerar que o raio visual é muita vez atravessado por outros corpos, calças
masculinas, vestidos femininos, um ou outro carro, mas é raro que os olhos se desviem
mais de alguns segundos. Às vezes olham tão de dentro que nem mesmo isso; nenhum
corpo lhes interrompe a vista. Ou de cansados, ou por outro motivo, fecham-se agora,
lentamente, lentamente, não para dormir ou cochilar, pode ser que para refletir, pode ser
que para coisa nenhuma. O leque, a pouco e pouco, vai parando, e descamba, aberto
mesmo, no regaço da dona. Mas aí volta o caixeiro, e ela torna ao exame das rendas, à
comparação, ao reparo, a achar que o tecido desta é melhor, que o desenho daquela é
melhor, e que o preço daquela outra é ainda melhor que tudo. O caixeiro, inclinado,
risonho, informa, discute, demonstra, concede, e afinal conclui o negócio; a dona leva
tantos metros de uma e tantos de outra.
Comprou; agora paga. Tira a carteirinha da bolsa, saca um maçozinho de notas, e,
vagarosamente, puxa uma, enquanto o caixeiro faz a conta a lápis. Dá-lhe a nota, ele
pega nela e nas rendas compradas e vai ao caixa; depois traz o troco e as compras.
— Não há de querer mais nada? pergunta ele.
— Não, responde ela sorrindo.
E guarda o troco, enfia o dedo no rolozinho das compras, disposta a sair, mas não sai,
deixa-se estar sentada. Parece-lhe que vai chover; di-lo ao caixeiro, que opina de modo
contrário, e com razão, pois o tempo está seguro. Mas pode ser que a dama dissesse
aquilo, como diria outra coisa qualquer, ou nada. A verdade é que tem o rolo enfiado no
dedo, o leque fechado na mão, o chapelinho de sol em pé, com a mão sobre o cabo,
prestes a sair, mas sem sair. Os olhos é que tornam à rua, às pedras, fixos como uma
idéia de doido. Inclinado sobre o balcão, o caixeiro diz-lhe alguma coisa, uma ou outra
palavra, para corresponder tanto ou quanto ao sorriso maligno de um colega, que está no
balcão fronteiro. É opinião deste que a dama em questão, que não quer outra pessoa que
a sirva, senão o mesmo caixeiro, anda namorada dele. Vendo que ela está pronta para ir-
se e não vai, sorri velhacamente, mas com disfarce, olhando para as agulhas que serve a
uma freguesa. Daí as palavras do outro, acerca disto ou daquilo, palavras que a dama
não ouve, porque realmente tem os olhos parados e esquecidos.
Já falei das calças masculinas, que de quando em quando cortam o raio visual da nossa
dama. Toda a gente que sabe ler, que conhece a alma do licenciado Garcia,
compreendeu que eu não apontei uma tal circunstância para ter o vão gosto de dizer que
andam calças na rua, mas por um motivo mais alto e recôndito; para acompanhar de
longe a entrada de um homem na loja. Puro efeito de arte; cálculo e combinação de
gestos. São assim as obras meditadas; são assim os longos frutos de longa gestação.
Podia fazer entrar este homem sem nenhum preparo anterior, fazê-lo entrar assim
mesmo, de chapéu na mão, e cumprimentar a dama, que lhe pergunta como está,
chamando-lhe doutor; mas eu pergunto se não é melhor que o leitor, ainda sem o saber,
esteja advertido de uma tal entrada. Não há duas respostas.
Se ela lhe chamou doutor, ele chamou-lhe D. Clara, falaram dez minutos, se tanto, até
que ela dispôs-se definitivamente a sair; ao menos, disse-o ao recém-chegado. Este era
um homem de trinta e dois a trinta e quatro anos, não feio, antes simpático que bonito,
feições acentuadas do Norte, estatura mediana, e um grande ar de seriedade. A vontade
que ele tinha era de ficar ali com ela, ainda uma meia hora, ou acompanhá-la à casa. A
prova está no ar comovido com que lhe fala, dependente, suplicante quase; os modos
dela é que não animam nada. Sorriu uma ou duas vezes, para ele, mas um sorriso sem
significação, ou com esta significação: — “.
— Bem, disse ele; se me dá licença...
— Pois não. Até quando?
— Não vai hoje ao Matias?
— Vou... Até lá.
— Até lá.
Saiu ele, e foi esperar pouco adiante, não para acompanhá-la, mas para vê-la sair, para
gozá-la com os olhos, vê-la andar, pisar de um modo régio e tranqüilo. Esperou cinco
minutos, depois dez, depois vinte; aos vinte e um minutos é que ela saiu da loja. Tão
agitado estava ele que não pôde saborear nada; não pôde admirar de longe a figura,
realmente senhoril, da nossa dama. Ao contrário, parece que até lhe fazia mal. Mordeu o
beiço, por baixo do bigode, e caminhou para o outro lado, resolvendo não ir ao Matias,
resolvendo depois o contrário, desejoso de tirar aquela mulher de diante de si e não
querendo senão fixá-la diante de si por toda a eternidade. Parece enigmático, e não há
nada mais límpido.
Clara foi dali para a rua do Lavradio. Morava com a mãe. Eram cinco horas dadas, e D.
Antônia não gostava de jantar tarde; mas já devia esperar isto mesmo, pensava ela: a
filha só voltava cedo quando ela a acompanhava; em saindo só, ficava horas e horas.
— Anda, anda, é tarde, disse-lhe a mãe.
Clara foi despir-se. Não se despiu às pressas, para condescender com a mãe, ou fazer-se
perdoar a demora; mas, vagarosamente. No fim reclinou-se no sofá com os olhos no ar.
— Nhanhã não vai jantar? perguntou-lhe uma negrinha de quinze anos, que a
acompanhara ao quarto.
Não respondeu; posso mesmo dizer que não ouviu. Tinha os olhos, não já no ar, como há
pouco, mas numa das flores do papel que forrava o quarto; pela primeira vez reparou que
as flores eram margaridas. E passou os olhos de uma a outra, para verificar se a estrutura
era a mesma, e achou que era a mesma. Não é esquisito? Margaridas pintadas em papel.
Ao mesmo tempo que reparava nas pinturas, ia-se sentindo bem, espreguiçando-se
moralmente, e mergulhando na atonia do espírito. De maneira que a negrinha falou-lhe
uma e duas vezes, sem que ela ouvisse coisa nenhuma; foi preciso chamá-la terceira vez,
alteando a voz:
— Nhanhã!
— Que é?
— Sinhá velha está esperando para jantar.
Desta vez, levantou-se e foi jantar. D. Antônia contou-lhe as novidades de casa; Clara
referiu-lhe algumas reminiscências da rua. A mais importante foi o encontro do Dr.
Severiano. Era assim que se chamava o homem que vimos na loja da rua da Quitanda.
— É verdade, disse a mãe, temos de ir à casa do Matias.
— Que maçada! suspirou Clara.
— Também você tudo lhe maça! exclamou D. Antônia. Pois que mal há em passar uma
noite agradável, entre meia dúzia de pessoas? Antes de meia-noite está tudo acabado.
Este Matias era um dos autores da situação em que o Severiano se acha. O ministro da
Justiça era o outro. Severiano viera do norte entender-se com o governo, acerca de uma
remoção: era juiz de direito na Paraíba. Para se lhe dar a comarca que ele pediu, tornavase necessário fazer outra troca, e o ministro disse-lhe que esperasse. Esperou, visitou
algumas vezes o Matias, seu comprovinciano e advogado. Foi ali que uma noite
encontrou a nossa Clara, e ficou um tanto namorado dela. Não era ainda paixão; por isso
falou ao amigo com alguma liberdade, confessou-lhe que a achava bonita, chegaram a
empregar entre eles algumas galhofas maduras e inocentes; mas afinal, perguntou-lhe o
Matias:
— Agora falando sério, você por que é que não casa com ela?
— Casar?
— Sim, são viúvos, podem consolar-se um ao outro. Você está com trinta e quatro, não?
— Feitos.
— Ela tem vinte e oito; estão mesmo ajustadinhos. Valeu?
— Não valeu.
Matias abanou a cabeça: — Pois, meu amigo, lá namoro de passagem é que você não
pilha; é uma senhora muito séria. Mas, que diabo! Você com certeza casa outra vez; se
há de cair em alguma que não mereça nada, não é melhor esta que eu lhe afianço?
Severiano repeliu a proposta, mas concordou que a dama era bonita. Viúva de quem?
Matias explicou-lhe que era viúva de um advogado, e tinha alguma coisa de seu; uma
renda de seis contos. Não era muito, mas com os vencimentos de magistrado, numa boa
comarca, dava para pôr o céu na terra, e só um insensato desprezaria uma tal pepineira.
— Cá por mim, lavo as mãos, concluiu ele.
— Podes limpá-las à parede, replicou Severiano rindo.
Má resposta; digo má por inútil. Matias era serviçal até ao enfado. De si para si entendeu
que devia casá-los, ainda que fosse tão difícil como casar o Grão-Turco e a república de
Veneza; e uma vez que o entendia assim, jurou cumpri-lo. Multiplicou as reuniões íntimas,
fazia-os conversar muitas vezes, a sós, arranjou que ela lhe oferecesse a casa, e o
convidasse também para as reuniões que dava às vezes; fez obra de paciência e
tenacidade. Severiano resistiu, mas resistiu pouco; estava ferido, e caiu. Clara, porém, é
que não lhe dava a menor animação, a tal ponto que se o ministro da Justiça o
despachasse, Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o que ele dizia a si
mesmo, sinceramente, mas dada a diferença que vai do vivo ao pintado, podemos crer
que fugiria lentamente, e pode ser até que se deixasse ficar. A verdade é que ele
começou a não perseguir o ministro, dando como razão que era melhor não exaurir-lhe a
boa vontade; importunações estragam tudo. E voltou-se para Clara, que continuou a não
o tratar mal, sem todavia passar da estrita polidez. Às vezes parecia-lhe ver nos modos
dela um tal ou qual constrangimento, como de pessoa que apenas suporta a outra. Ódio
não era; ódio, por quê? Mas ninguém obsta uma antipatia, e as melhores pessoas do
mundo podem não ser arrastadas uma para a outra. As maneiras dela na loja vieram
confirmar-lhe a suspeita; tão seca! tão fria!
— Não há dúvida, pensava ele; detesta-me; mas que lhe fiz eu?
Entre ir e não ir à casa do Matias, Severiano adotou um meio-termo: era ir tarde, muito
tarde. A razão secreta é tão pueril que não me animo a escrevê-la; mas o amor absolve
tudo. A secreta razão era dissimular quaisquer impaciências namoradas, mostrar que não
fazia caso dela, e ver se assim... Compreenderam, não? Era a aplicação daquele
pensamento, que não sei agora, se é oriental ou ocidental, em que se compara a mulher à
sombra: segue-se a sombra, ela foge; foge-se, ela segue. Criancices de amor — ou para
escrever francamente o pleonasmo: criancices de criança. Sabe Deus se lhe custou
esperar! Mas esperou, lendo, andando, mordendo o bigode, olhando para o chão,
chegando o relógio ao ouvido para ver se estava parado. Afinal foi; eram dez horas,
quando entrou na sala.
— Tão tarde! disse-lhe o Matias. Esta senhora já tinha notado a sua falta.
Severiano cumprimentou friamente, mas a viúva, que olhava para ele de um modo
oblíquo, conheceu que era afetação. Parece que sorriu, mas foi para dentro; em todo o
caso, pediu-lhe que se sentasse ao pé dela; queria consultá-lo sobre uma coisa, uma
teima que tivera na véspera com a mulher do chefe de polícia. Severiano sentou-se
trêmulo.
Não nos importa a matéria da consulta; era um pretexto para conversação. Severiano
demorou o mais que pôde a solução pedida, e quando lhe deu, ela pensava tão pouco em
ouvi-la que não sabia já de que se tratava. Olhava então para o espelho ou para as
cortinas; creio que era para as cortinas.
Matias, que os espreitara de longe, veio ter com eles, sentou-se e declarou que trazia
uma denúncia na ponta da língua.
— Diga, diga, insistiu ela.
— Digo? perguntou ele ao outro.
Severiano enfiou, e não respondeu logo, mas, teimando o amigo, respondeu que sim.
Aqui peço perdão da frivolidade e da impertinência do Matias; não hei de inventar um
homem grave e hábil só para evitar uma certa impressão às leitoras. Tal era ele, tal o dou.
A denúncia que ele trazia era a da partida próxima do Severiano, mentira pura, com o
único fim de provocar da parte de D. Clara uma palavra amiga, um pedido, uma
esperança. A verdade é que D. Clara sentiu-se penalizada. Quê? ia-se embora? e para
não voltar mais?
— Afinal serei obrigado a isso mesmo, disse Severiano: não posso ficar toda a vida aqui.
Já estou há muito, a licença acaba.
— Vê? disse Matias voltando-se para a viúva.
Clara sorriu, mas não disse nada. Entretanto, o juiz de direito, entusiasmado, confessou
que não iria sem grandes saudades da corte. Levarei as melhores recordações da minha
vida, concluiu.
O resto da noite foi agradável. Severiano saiu de lá com as esperanças remoçadas. Era
evidente que a viúva chegaria a aceitá-lo, pensava ele consigo; e a primitiva idéia do ódio
era simplesmente insensata. Por que é que lhe teria ódio? Podia ser antipatia, quando
muito; mas nem era antipatia. A prova era a maneira por que o tratou, parecendo-lhe
mesmo que, à saída, um aperto de mão mais forte... Não jurava, mas parecia-lhe...
Este período durou pouco mais de uma semana. O primeiro encontro seguinte foi em
casa dela, onde a visitou. Clara recebeu-o sem alvoroço, ouviu-lhe dizer algumas coisas
sem lhe prestar grande atenção; mas, como no fim confessou que lhe doía a cabeça,
Severiano agarrou-se a esta razão para explicar uns modos que traziam ares de desdém.
O segundo encontro foi no teatro.
— Que tal acha a peça? perguntou ela logo que ele entrou no camarote.
— Acho-a bonita.
— Justamente, disse a mãe. Clara é que está aborrecida.
— Sim?
— Cismas de mamãe. Mas então parece-lhe que a peça é bonita?
— Não me parece feia.
— Por quê?
Severiano sorriu, depois procurou dar algumas das razões que o levavam a achar a peça
bonita. Enquanto ele falava ela olhava para ele abanando-se, depois os olhos
amorteceram-se-lhe um pouco, finalmente ela encostou o leque aberto à boca, para
bocejar. Foi, ao menos, o que ele pensou, e podem imaginar se o pensou alegremente. A
mãe aprovava tudo, porque gostava do espetáculo, e tanto mais era sincera, quanto que
não queria vir ao teatro; mas a filha é que teimou até o ponto de a obrigar a ceder. Cedeu,
veio, gostou da peça, e a filha é que ficou aborrecida, e ansiosa de ir embora. Tudo isso
disse ela rindo ao juiz de direito; Clara mal protestava, olhava para a sala, abanava-se,
tapava a boca, e como que pedia a Deus que, quando menos, a não destruir o universo,
lhe levasse aquele homem para fora do camarote. Severiano percebeu que era demais e
saiu.
Durante os primeiros minutos, não soube ele o que pensasse; mas, afinal, recapitulou a
conversa, considerou os modos da viúva, e concluiu que havia algum namorado.
— Não há que ver, é isto mesmo, disse ele consigo; quis vir ao teatro, contando que ele
viesse; não o achando, está aborrecida. Não é outra coisa.
Era a segunda explicação das maneiras da viúva. A primeira, ódio ou aversão natural, foi
abandonada por inverossímil; restava um namoro, que não só era verossímil, mas tinha
tudo por si. Severiano entendeu desde logo que o único procedimento correto era deixar o
campo, e assim fez. Para escapar às exortações de Matias, não lhe diria nada, e passou
a visitá-lo poucas vezes. Assim se passaram cinco ou seis semanas. Um dia, viu Clara na
rua, cumprimentou-a, ela falou-lhe friamente, e foi andando. Viu-a ainda duas vezes, uma
na mesma loja da rua da Quitanda, outra à porta de um dentista. Nenhuma alteração para
melhor; tudo estava acabado.
Entretanto, apareceu o despacho do Severiano, a remoção de comarca. Ele preparou-se
para seguir viagem, com grande espanto do amigo Matias, que imaginava o namoro a
caminho, e cria que eles haviam chegado ao período da discrição. Quando soube que não
era assim, caiu das nuvens. Severiano disse-lhe que era negócio acabado; Clara tinha
alguma aventura.
— Não creio, reflexionou Matias; é uma senhora severa.
— Pois será uma aventura severa, concordou o juiz de direito; em todo caso, nada tenho
com isto, e vou-me embora.
Matias refutou a opinião, e acabou dizendo que uma vez que ele recusava, não faria mais
nada — exceto uma coisa única. Essa coisa, que ele não disse o que era, foi nada menos
que ir diretamente à viúva e falar-lhe da paixão do amigo. Clara sabia que era amada,
mas estava longe de imaginar a paixão que o Matias lhe pintou, e a primeira impressão foi
de aborrecimento.
— Que quer que lhe faça? perguntou ela.
— Peço-lhe que reflita e veja se um homem tão distinto não é um marido talhado no céu.
Eu não conheço outro tão digno...
— Não tenho vontade de casar.
— Se me jura que não casa, retiro-me; mas se tiver de casar um dia, por que não
aproveita esta ocasião?
— Grande amigo é o senhor do seu amigo.
— E por que não seu?
Clara sorriu, e apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, começou a brincar com os
dedos. A teima começava a impacientá-la. Era capaz de ceder, só para não ouvir falar
mais nisto. Afinal agarrou-se à impossibilidade material; ele vai para uma comarca interior,
ela nunca sairia do Rio de Janeiro.
— Tal é a dúvida? perguntou o Matias.
— Parece-lhe pouco?
— De maneira que, se ele aqui ficasse, a senhora casava?
— Casava, respondeu Clara olhando distraidamente para os pingentes do lustre.
Distração do diabo! Foi o que a perdeu, porque o Matias fez daquela resposta um
protocolo. A questão era alcançar que o Severiano ficasse, e não gastou dez minutos
nessa outra empresa. Clara, apanhada no laço, fez boa cara, e aceitou o noivo sorrindo.
Tratou-o mesmo com tais agrados que ele pensou nas palavras do amigo; acreditou que,
em substância, era grandemente amado, e que ela não fizera mais do que ceder aos
poucos.
Mas essa terceira razão era tão contrária à realidade como as outras duas; — nem ela o
amava, nem lhe tinha ódio, nem amava a outro. A verdade única e verdadeira é que ela
era um modelo acabado de inércia moral; e, casou para acabar com a importunação do
Matias. Casaria com o diabo, se fosse necessário. Severiano reconheceu isso mesmo
com o tempo. Uma vez casada, Clara ficou sendo o que sempre fora, capaz de gastar
duas horas numa loja, quatro num canapé, vinte numa cama com o pensamento em coisa
nenhuma.

Corpora

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