Cantiga velha

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Cantiga velha * 
Capítulo primeiro
Conversávamos de cantigas populares. Entre o jantar e o chá, quatro pessoas tão somente, longe do voltarete e da polca, confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dous organismos vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a espadilha e duas ou três oitavas do Caia no beco ou qualquer outro título da mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dous pouco sabíamos da matéria; tão somente algumas reminiscências da infância ou da adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía alguma cousa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um regalo de príncipes.
Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso; notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar seja abundante,
esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma boa xícara de café por cima, e para os que fumam
um havana de cruzado. Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos. Evidentemente são organizações superiores.
O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos os quatro, no fim, para junto de uma janela, que abria para um dos lados da chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de cantigas populares.
- Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes que tenho ouvido - disse um de nós -. Morava na
rua da Carioca, e um dia de manhã ouvi, do lado dos fundos, esta quadrinha:
Coitadinho, como é tolo
Em cuidar que eu o adoro
Por me ver andar chorando...
Sabe Deus por quem eu choro!
O ledor de cancioneiros pegou da quadra para esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo; mas outro ouvinte, o Dr. Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas. Como recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a casa; era perto do
largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos de 1864 e 1865.
- Isso mesmo - disse ele.
- Isso mesmo, quê?
- Nunca viu a pessoa que cantava?
- Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira, mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...
- Se soubessem que essa quadrinha era comigo! - disse ele sacudindo a cinza do charuto.
E como lhe perguntássemos se ele era o aludido do último verso - Sabe Deus por quem eu choro - respondeu-nos que não. 
- Eu sou o tolo do princípio da quadra. A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira, tudo combina.
- Vamos ver se combina - disse o ex-morador da rua da Carioca piscando-me o olho -. Chamava-se Luísa?
- Não; chamava-se Henriqueta.
- Alta?
- Alta. Conheceu-a?
- Não; mas então essa Henriqueta era alguma princesa incógnita, que...
- Era uma costureira - retorquiu o Veríssimo -. Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do
Sul poucos meses antes. Pouco depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma cousa muito particular. Minha mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A cousa passou-se assim...
II
- A cousa passou-se assim. Vim do Sul, e fui alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na
guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso que minha mãe não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do
Rio de Janeiro; entendia que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou-me a ela.
Dona Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos, e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza da casa. Eu supus que a razão era tão somente a segunda, e tratei de lhe tirar escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito. Ajustamos a mesada. Deu-me um quarto, separado, no quintal. A casa era em
Mata-porcos. Eu palmilhava, desde casa até à
Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de manhã.
As duas filhas eram bonitinhas; mas a mais velha, Henriqueta, era ainda mais bonita que a outra. Nos primeiros tempos mostraram-se muito reservadas comigo. Eu, que só fui alegre, no primeiro dia, por cálculo, tornei ao que costumava ser; e, depois do almoço ou do jantar, metia-me comigo mesmo e os livros, deixando à viúva e às filhas toda a liberdade. A mãe, que queria o meu respeito, mas não exigia a total abstenção, chamou-me um dia bicho do mato.
- Olhe que estudar é bom, e sua mãe quer isso mesmo - disse-me ela -; mas parece que o senhor estuda demais. Venha conversar com a gente.
Fui conversar com elas algumas vezes. Dona Cora era alegre, as filhas não tanto, mas em todo caso muito sociáveis. Duas ou três pessoas da vizinhança iam ali passar algumas horas, de quando em quando. As reuniões e palestras repetiram-se naturalmente, sem nenhum sucesso extraordinário, ou mesmo curioso, e assim se foram dous meses.
No fim de dous meses, Henriqueta adoeceu, e eu prestei à família muito bons serviços, que a mãe agradeceu-me de todos os modos, até ao enfado. Dona Cora estimava-me, realmente, e desde então foi como uma segunda mãe. Quanto a Henriqueta, não me agradeceu menos; tinha, porém, as reservas da idade, e naturalmente não foi tão expansiva. Eu confesso que, ao vê-la depois, convalescente, muito pálida, senti crescer a simpatia que me ligava a ela, sem perguntar a mim mesmo se uma tal simpatia não começava a ser outra cousa. Henriqueta tinha uma figura e um rosto que se prestavam às atitudes moles da convalescença, e a palidez desta não fazia mais do que acentuar a nota de distinção da sua fisionomia. Ninguém diria ao vê-la, fora, que era uma mulher de trabalho.
Apareceu por esse tempo um candidato à mão de Henriqueta. Era um oficial de secretaria, rapaz de vinte e oito anos, sossegado e avaro. Esta era a fama que ele tinha no bairro; diziam que não gastava mais de uma quarta parte dos vencimentos, emprestava a juros outra quarta parte, e aferrolhava o resto. A mãe possuía uma casa: era um bom casamento para Henriqueta. Ela, porém, recusou; deu como razão que não simpatizava com o pretendente, e era isso mesmo. A mãe disse-lhe que a simpatia viria depois; e, uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar. Conselhos vãos; Henriqueta declarou que só casaria com quem lhe merecesse. O candidato ficou triste, e foi verter a melancolia no seio da irmã de Henriqueta, que não só acolheu a melancolia, como principalmente o melancólico, e os dous casaram-se no fim de três meses.
- Então? - dizia Henriqueta rindo -.
O casamento e a mortalha...
Eu, pela minha parte, fiquei contente com a recusa da moça; mas, ainda assim, não atinei se era isto uma sensação de amor. Vieram as férias, e fui para o
Sul.
No ano seguinte, tornei à casa de D. Cora. Já então a outra filha estava casada, e ela morava só com Henriqueta. A ausência tinha feito adormecer em mim o sentimento mal expresso do ano anterior, mas a vista da moça acendeu-o outra vez, e então não tive dúvida, conheci o meu estado, e deixei-me ir.
Henriqueta, porém, estava mudada. Ela era alegre, muito alegre, tão alegre como a mãe. Vivia cantando; quando não cantava, espalhava tanta vida em volta de si, que era como se a casa estivesse cheia de gente. Achei-a outra; não triste, não silenciosa, mas com intervalos de preocupação e cisma. Achei-a, digo mal; no momento da chegada apenas tive uma impressão leve e rápida de mudança; o meu próprio sentimento encheu o ar ambiente, e não me permitiu fazer logo a comparação e a análise.
Continuamos a vida de outro tempo. Eu ia conversar com elas, à noite, às vezes os três sós, outras vezes com alguma pessoa conhecida da vizinhança. No quarto ou quinto dia, vi ali um personagem novo. Era um homem de trinta anos, mais ou menos, bem-parecido. Era dono de uma farmácia do
Engenho Velho, e chamava-se Fausto. Éramos os únicos homens, e não só não nos vimos com prazer, mas até estou que nos repugnamos intimamente um ao outro.
Henriqueta não me pareceu que o tratasse de um modo especial. Ouvia-o com prazer, acho eu; mas não me ouvia com desgosto ou aborrecimento, e a igualdade das maneiras tranquilizou-me nos primeiros dias. No fim de uma semana, notei alguma cousa mais. Os olhos de ambos procuravam-se, demoravam-se ou fugiam, tudo de um modo suspeito. Era claro que, ou já se queriam, ou caminhavam para lá.
Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes feios: tolo, parvo,
maricas, tudo. Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior, vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de
deitar barro à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente necessário nas nossas relações.
Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e perguntei-lhe se queria que me fosse embora.
- Embora? - repetiu ela.
- Sim, diga se quer que eu vá embora.
- Mas como é que hei de querer que o senhor se vá embora?
- Sabe como - disse-lhe eu dando à voz um tom particular. 
Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.
- Vamos, decida!
- Deixe-me, deixe-me - respondeu ela. 
Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei sozinho. Compreendi que ela pertencia ao outro, ou, pelo menos, não me pertencia absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou espantada para mim, e perguntou-me se me tinham feito algum mal.
- Nenhum mal.
- Mas então...
- Preciso mudar-me - disse eu.
Dona Cora ficou abatida e triste. Não podia atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim, e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.
- Sei que é por mim - disse ela.
Não lhe disse nada.
- Mas que culpa tenho eu se...
- Não diga o resto. Que culpa tem de não gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar-me com a sua presença forçada?
Henriqueta ficou alguns minutos calada, olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia-me. Henriqueta pensava no melhor modo de me dizer uma cousa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para ela, sentia que faltava pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A mãe entrou; e foi uma fortuna.
III
Veríssimo interrompeu a narração, porque algumas moças entraram a buscá-lo. Faltavam pares; não admitiam demora.
- Dez minutos, ao menos?
- Nem dez.
- Cinco?
- Cinco apenas.
Elas saíram; ele concluiu a história.
- Retirado ao meu quarto, meditei cerca de uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha. Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior parte do tempo. Evitaria a combustão.
Dona Cora sentiu naturalmente a mudança, ao cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de grandes cuidados, até que me interrogou diretamente. Respondi-lhe o que me veio à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre, quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.
Dona Cora, porém, não entendeu nada.
Quanto ao Fausto, continuou a frequentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais. Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo - o que sabia, ao menos - porque eu na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez mais dele, e ele, parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los;
pode ser mesmo que tivesse o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita penetração e frieza de espírito. Sabia o principal, e o principal era bastante para eliminar o resto.
O que soube dele é que era viúvo, mas tinha uma amante e dous filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a tal família existia.
Assim se passaram dous longos meses. No fim desse tempo, ou mais, quase três meses, D. Cora veio ter comigo muito alegre; tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o que era - um casamento...
Creio que empalideci. Dona Cora, em todo caso, olhou para mim admirada, e, durante alguns segundos, fez-se entre nós o mais profundo silêncio. Perguntei-lhe afinal o nome dos noivos;
ela disse-me a custo que a filha Candinha ia casar com um amanuense de secretaria. Creio que respirei; ela olhou para mim ainda mais espantada.
A boa viúva desconfiou a verdade. Nunca pude saber se ela interrogou a filha; mas é provável que sim, que a sondasse, antes de fazer o que fez daí a três semanas. Um dia, vem ter comigo, quando eu estudava no meu quarto; e, depois de algumas perguntas indiferentes, variadas e remotas, pediu-me que lhe dissesse o que tinha. Respondi-lhe naturalmente que não tinha nada.
- Deixe-se de histórias - atalhou ela -. Diga-me o que tem.
- Mas o que é que tenho?
- Você é meu filho; sua mãe autorizou-me a tratá-lo como tal. Diga-me tudo; você tem alguma paixão, algum...
Fiz um gesto de ignorância.
- Tem, tem - continuou ela -, e há de me dizer o que tem. Talvez tudo se esclareça se alguém falar, mas não falando, ninguém...
Houve e não houve cálculo nestas palavras de D. Cora; ou, para ser mais claro, ela estava mais convencida do que dizia. Eu supunha-lhe, porém, a convicção inteira, e caí no laço. A esperança de poder arranjar tudo, mediante uma confissão à mãe, que me não custava muito, porque a idade era própria das revelações, deu asas às minhas palavras, e dentro de poucos minutos, contava eu a natureza dos meus sentimentos, sua data, suas tristezas e desânimos. Cheguei mesmo a contar a conversação que tivera com Henriqueta, e o pedido desta. Dona Cora não pôde reter as lágrimas. Ela ria e chorava com igual facilidade; mas naquele caso a ideia de que a filha pensara nela, e pedira um sacrifício por ela, comoveu-a naturalmente. Henriqueta era a sua principal querida.
- Não se precipite - disse-me ela no fim -; eu não creio no casamento com o Fausto; tenho ouvido umas cousas... bom moço, muito respeitado, trabalhador e honesto. Digo-lhe que me honraria com um genro assim; e a não ser você, preferia a ele. Mas parece que o homem tem umas prisões...
Calou-se, à espera que eu confirmasse a notícia; mas não respondi nada. Cheguei mesmo a dizer-lhe que não achava prudente indagar mais nada, nem exigir. Eu no fim do ano tinha de retirar-me; e lá passaria o tempo. Provavelmente disse ainda outras cousas, mas não me lembro.
A paixão dos dous continuou, creio que mais forte, mas singular da parte dele. Não lhe dizia nada, não lhe pedia nada; parece mesmo que não lhe escrevia nada. Gostava dela; ia lá com frequência, quase todos os dias.
Dona Cora interveio um dia francamente, em meu favor. A filha não lhe disse cousa diferente do que me dissera, nem com outra hesitação. Respondeu que não se pertencia, e, quando a mãe exigiu mais, disse que amava ao Fausto, e casaria com ele, se ele a pedisse, e nenhum outro, ao menos por enquanto. Ele não a pedia, não a soltava; toda a gente supunha que a razão verdadeira do silêncio e da reserva era a família de empréstimo. Vieram as férias; fui para o
Rio Grande, voltei no ano seguinte, e não tornei a morar com D. Cora.
Esta adoeceu gravemente e morreu. Cândida, já casada, foi quem a enterrou; Henriqueta foi morar com ela. A paixão era a mesma, o silêncio, o mesmo, e a razão provavelmente não era outra, senão a mesma. Dona Cora pediu a Henriqueta, na véspera de expirar, que casasse comigo. Foi Henriqueta mesma quem me contou o pedido, acrescentando que lhe respondeu negativamente.
- Mas que espera a senhora? - disse-lhe eu.
- Espero em Deus.
O tempo foi passando, e os dous amavam-se do mesmo modo. Candinha brigou com a irmã. Esta fez-se costureira na tal casa da
rua da Carioca, honesta, séria, laboriosa, amando sempre, sem adiantar nada, desprezando o amor e a abastança que eu lhe dava, por uma ventura fugitiva que não tinha... Tal qual como na trova popular...
- Qual trova! Nem meia trova! - interromperam as moças invadindo o gabinete -. Vamos dançar.
Contos avulsos - Fase 8
OUTROS CONTOS - FASE 8 (1884)
Machado de Assis 
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Esta que se denominou aqui "oitava fase" dos contos avulsos de Machado de Assis reúne nove peças, publicadas em A Estação no ano de 1884. Dos nove contos, cinco são assinados por M. de A., três, por Machado de Assis e um por M. A.
Já há algum tempo, por iniciativa de editoras como a Jackson e a Nova Aguilar, e de indivíduos como Raimundo Magalhães Jr.
(que nos anos 1950 publicou cinco volumes reunindo contos machadianos), o leitor dos séculos XX e XXI teve acesso a muitas dessas histórias. Nas edições anteriores à de 2008, a Nova Aguilar reuniu, sob o título de "Outros contos", 46 títulos. Os contos "completos" de Machado de Assis, no entanto, eram (e são) acessíveis eletronicamente, desde 2002, em www2.uol.com.br/ machadodeassis, graças a uma iniciativa pioneira de Cláudio Abramo.
Em 2008, como parte das comemorações do primeiro centenário da morte do escritor, a Nova Aguilar reuniu a obra completa de Machado de Assis em quatro volumes e ofereceu ao leitor, em suporte material, todos os contos machadianos. Aqueles que não foram selecionados pelo autor para figurarem nos
sete volumes de contos que publicou durante sua vida compõem o segundo e o terceiro volume dessa edição, num total de mais de mil páginas, sob o título de "Contos avulsos". São 114 contos ao todo, na grande maioria, bastante extensos.
A imensidão e as dificuldades do corpus exigiram da nossa equipe uma espécie de reinvenção metodológica: distribuímos os contos por períodos, mais ou menos curtos, de modo que, a cada etapa, lidássemos com, no máximo 15 contos. O que se publica aqui é o que chamamos "Contos avulsos - fase 8", reunindo peças publicadas em A Estação entre janeiro e dezembro de 1884. Nos próximos meses, esperamos ir dando conta, em várias etapas semelhantes a esta, do conjunto completo.
Não há unidade temática entre os contos aqui reunidos, como, aliás, não costuma haver mesmo nos livros publicados pelo autor em vida, cujos títulos, sempre no plural, são por si só uma indicação de diversidade. Trata-se de peças em que às vezes já se desenha o humor machadiano e em que já é possível detectar-se o sarcasmo corrosivo peculiar ao autor maduro. Nessas peças, o sarcasmo machadiano passa a vir mais encorpado, revelando não somente uma severa crítica social, mas também um ceticismo em relação à humanidade. A acidez de Machado não escolhe tipos, antes atinge a todos, independente de sexo ou classe social. Nelas já se pode encontrar o que o crítico machadiano José Luiz Passos diz sobre as personagens do Bruxo: "Machado substitui a ênfase cênica pela constituição mais elaborada do comportamento humano, pelo aprofundamento psicológico dos seus personagens, pela verossimilhança das suas motivações e pela ambiguidade das suas composições morais".
Já foi notado que a ficção de Machado de Assis apresenta certos motivos recorrentes. "O caso do Romualdo", de 1884, é um exemplo disso. O conto, que é o mais longo desta reunião, já de início, expõe uma falha moral da personagem de Vieira para com a mulher, Carlota, falha esta que prenuncia o comportamento arrivista de Palha, de Quincas Borba: "Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela". Convém notar que o romance foi publicado em livro em 1891, mas antes saíra em capítulos também no periódico A Estação, a partir de 1886.
O mesmo conto traz à tona um tópico já explorado antes em Memórias Póstumas de Brás Cubas, e que, de certa forma, aparece em toda a ficção de Machado. Trata-se do "princípio de Helvetius", no qual se explicita a ideia de que a ética pública tem uma base utilitária: o interesse pessoal, fundado no amor ao prazer e no temor ao sofrimento.  Percebe-se a presença dessa filosofia no trecho: "O aperto de mão foi significativo; um tremia de esperanças, outro, de saudades; ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o coração, e punham tão somente o interesse - ou de amor ou de política -, mas o velho interesse, tão amigo da gente e tão caluniado." 
O ceticismo também se apresenta no conto "Entre duas datas" através de um tema muito caro a Machado: o efeito do tempo nas relações pessoais. O reencontro de ex-namorados também é tema de outros contos do escritor, como "Noite de almirante" (publicado no mesmo ano, 1884, na Gazeta de Notícias e no livro Histórias sem data), "Mariana" (de 1891, também publicado na Gazeta de Notícias, e, mais tarde, figurando em Várias histórias) e "Um quarto de século" (1893), ainda a ser publicado neste portal. As três primeiras narrativas são mais parecidas entre si, tendo a última um final ligeiramente diferente das primeiras. Mas a máxima que figura em "Entre duas datas" aplica-se perfeitamente às quatro peças: "Não se refazem os homens - e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não." 
Não só de profundidade psicológica se sustenta a narrativa machadiana. Aqui e ali o Bruxo presenteia os leitores com narrativas leves, quase frívolas, porém com um humor refinado, no seu melhor estilo. É o caso de "Vinte anos! Vinte anos!", que, além de ser um conto curto e saboroso, faz o leitor do século XXI "passear" pelo Rio de Janeiro do século XIX:
Gonçalves foi por ali fora, rua do Passeio, rua da Ajuda, rua dos Ourives, até à rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas.
Também superficial e, além disso, de menor refinamento, é o conto "O melhor remédio", em que se poderia afirmar que Machado ensaia o gênero dramático, tal é o volume de diálogos na história. 
A autoconsciência narrativa não poderia deixar de aparecer aqui como elemento distintivo da ficção do autor. Sabe-se que escritores ingleses do século XVIII, como Fielding e Sterne, foram influências fundamentais para que esse traço alcançasse excelência na prosa do autor brasileiro, a ponto de ser uma marca da sua produção. Em "Trina e una", há parágrafos inteiros de metanarrativa. Outros exemplos podem ser observados em: "Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço." ("O contrato"); ou "O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor sabe, se se lembra do que leu." ("A viúva Sobral").                                                                           
Em crítica a Eça de Queirós, publicada em O Cruzeiro, em 1878, o brasileiro afirma que em O primo Basílio: "[...] cumpria não acumular tanto as cores, nem acentuar tanto as linhas", refletindo sobre o exagero de certos traços do português, que tornariam o livro inverossímil e pesado. Percebe-se que crítico e autor andam juntos nas opiniões e no exercício da narrativa: seja na exploração da fragilidade dos pactos e promessas ("O contrato"), dos dilemas éticos e morais no interior de cada indivíduo ("A carteira"), seja na sondagem da fatalidade de certos destinos ("Uma carta"), Machado de Assis surpreende pela crescente sofisticação com que trata a densidade da vida humana. 
***
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com as edições digitalizadas do periódico em que os contos foram publicados, disponíveis no acervo da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. Excepcionalmente, no conto "A carteira" a edição utilizada para cotejo foi a disponível no acervo digital da Coleção Brasiliana da Universidade de São Paulo.
Tal cotejo se revelou fundamental, na medida em que as edições existentes, tanto as impressas como as disponíveis em meio eletrônico, quase todas oriundas ou das coletâneas reunidas pela editora Jackson na coleção da obra completa de Machado de Assis, ou dos cinco volumes de contos machadianos publicados por Raimundo Magalhães Jr., apresentam problemas seriíssimos: falta de passagens inteiras, substituição de palavras, "correções" ao texto machadiano (quer com substituição de palavras talvez consideradas menos "nobres", quer com flexões verbais e nominais modificadas em observância a normas gramaticais). Disto procurou-se dar conta em links, que, nesta edição - o leitor notará - não se restringem às citações e alusões histórico-literárias e à toponímia, tratando de casos mais propriamente linguísticos.
Foi feita uma atualização ortográfica. Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Teatro Ginásio", "Câmara", "Igreja". Quanto aos numerais, manteve-se a forma usada nas publicações originais, ora por extenso, ora em algarismos.
Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "folha" ("jornal"); "mofina" ("matéria de jornal, em geral difamatória"); "morder" ("criticar, falar mal"); "namorados" ("apaixonados, admiradores"). Mantiveram-se palavras estrangeiras na língua original: bond, toilette, in petto. 
Usos hoje considerados incorretos foram mantidos, como a flexão de gênero em advérbio: "Enquanto ela, meia inclinada, ia acompanhando as linhas do livro [...]" (grifo nosso). Outra construção reiteradamente usada pelo autor (e aqui mantida) é a regência indireta indevida, como em "o que é que lhe impede de casar?", em vez de "o que é que o impede de casar?" 
Buscou-se sempre a maior proximidade possível com a publicação original, o que nem sempre tem sido a política de edições posteriores. A edição Jackson da década de 1930 consagrou o uso de "dous", quando em A Estação o autor emprega quase sempre "dois" (embora, contraditoriamente, use "cousa" e não "coisa", exceto em "O caso do Romualdo", em que "coisas" aparece uma vez). Respeitaram-se as oscilações registradas na publicação original, às vezes no mesmo conto, entre "até o ponto" e "até ao enfado", "chegada à casa" e "chegando a casa", "em todo o caso" e "em todo caso", "daí três dias" e "daqui a dous meses". (Grifos nossos.)
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior, observando-se que não raro o autor omite a vírgula em casos absolutamente idênticos, às vezes no mesmo conto: "Não comprei, e fui andando.", mas "vi outro broche muito bonito e tive vontade de comprá-lo." Já não se dá, como em contos anteriores, a mesma oscilação entre o uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo."; "Mas aí volta o caixeiro, e ela torna ao exame das rendas, [...]"; Casos de ausência de vírgula, como em "Era um homem com quem ela antipatizava profundamente e que ele queria fazer amigo da casa." são raríssimos, talvez este sendo o único em todos os nove contos desta "fase".
Quanto às adversativas no meio de uma oração, o autor oscila entre isolá-las entre vírgulas e simplesmente não usar vírgula alguma: "Os olhos, porém, eram o menos."; mas: "ela porém respondeu-me que não". Respeitou-se, sempre, a oscilação, tal como consta na publicação original, ainda que se possa admitir que tal oscilação fosse do tipógrafo e não, necessariamente, do autor. 
Preservou-se igualmente a alternância entre o emprego e o não emprego de vírgula antes de oração subordinada consecutiva: "tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro..."; mas: "ela pensava tão pouco em ouvi-la que não sabia já de que se tratava". Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz, assim como nos casos de orações subordinadas reduzidas de gerúndio, e, ainda, nas orações em que há uma inversão na ordem sintática habitual da frase.
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado parágrafo e travessão.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, bem como na elaboração de algumas notas, a de Laíza Verçosa do Nascimento, atual bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, 
bolsista de Iniciação Científica 
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq
junho de 2014

Corpora

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