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Um erradio *
A porta abriu-se... Deixa-me contar a história à laia de novela, disse Tosta à mulher, um mês depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa
velha fotografia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rapé, que os rapazes
chamavam opa.
- Aí vem a opa do Elisiário.
- Entre a opa só.
- Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas, primeiro há de glosar um mote. Quem dá o mote?
Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a família;
rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. Não podes ter ideia da sala e da vida. Imagina um município do
país da Boêmia, tudo desordenado e confuso; além dos poucos móveis pobres, que eram do
alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um baú de folha de flandres, livros, chapéus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam
outros, e todos eram tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha política e literária, publicada aos sábados. Que
longas palestras que tínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos mundos novos, constelações novas, liberdades novas. Tudo era novíssimo.
- Lá vai mote - disse afinal um dos rapazes, e recitou:
Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.
Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de
improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha ideia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha e a cena, um logro para mim. Elisiário despiu a
sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e foi pendurá-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o
chapéu ao teto, apanhou-o entre as mãos, e foi pô-lo em cima do aparador.
- Lugar para um! - disse finalmente.
Dei-me pressa em ceder-lhe o sofá; ele deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia.
- Que o
jantar é duvidoso - respondeu o redator principal do
Cenáculo -; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da
casa de pasto. Você já jantou?
- Já e bem - respondeu Elisiário -, jantei numa casa de comércio. Mas vocês por que é que não vendem o Chico? É um bonito crioulo. É livre, não há dúvida, mas por isso mesmo
compreenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados... Dous mil-réis chegam? Romeu, vê ali no bolso da sobrecasaca. Há de haver uns
dous mil-réis.
Havia só mil e quinhentos, mas não foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de um semestre.
- Não é possível! - bradou Elisiário -. Uma assinatura! Vem cá, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possível que fosse baixo; a ação é tão
sublime que nenhum homem baixo podia praticá-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos
perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.
- Dei, sim, senhor.
- Recibo! Mas a um assinante que paga não se dá recibo, para que ele pague outra vez; não se matam esperanças, Chico.
Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso único, sem alterar a face, nem
mostrar os dentes. Essa feição era a menos simpática; mas tudo o mais, a fala, as ideias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em
ditos, anedotas, epigramas, versos, descrições, ora sério, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia a barba por
fazer, o cabelo à escovinha; a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia estar pensando. Voltava-se a miúdo no sofá, erguia-se, sentava-se, tornava a
deitar-se. Lá o deixei, quando saí, às nove horas da noite.
Comecei a frequentar a casa da
rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não apareceu o Elisiário. Disseram-me que era muito incerto. Tinha
temporadas. Às vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de matemáticas. Não era formado em
cousa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito, deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de
escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e trasladavam ao papel, dando-lhe cópias, muitas das quais perdia. Não
tinha família; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pai de Elisiário, e quis pagá-los ao filho. Era atrevido por causa de uma
sombrinha de amor-próprio, que não tolerava a menor picada. Naquela casa era bonachão. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade
entre ele e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade.
No fim de uma semana, apareceu Elisiário na rua do Lavradio. Vinha com a ideia de escrever um drama, e queria ditá-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta
colaboração mental e manual durou duas noites e meia. Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro; Elisiário não quis absolutamente acabar a peça. A princípio disse que
depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras cousas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e
ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia cousa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós
contestávamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo - achava um crime não acabar o drama, que era de primeira ordem.
- Não vale nada - dizia ele sorrindo para mim com simpatia -. Menino, você quantos anos tem?
- Dezoito.
- Tudo é sublime aos dezoito anos. Cresça e apareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma ideia.
- Sim?
- Uma boa ideia - continuou ele com os olhos vagos -; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco atos; talvez faça em verso. O assunto presta-se...
Nunca mais falou em tal ideia; mas o drama começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-próprio satisfeito, por ver
que o mais consternado com a interrupção e condenação do trabalho fui eu - ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiário entrou a
distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe; meu pai era lavrador em
Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com ideias de compor um poema, um drama e
um romance. Tinha já uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notícias literárias, alguma cousa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus
sentimentos de moço. Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim, francês, inglês, história... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi
algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:
- Quero fazer de você um homem.
Estávamos sós; eu nada contei aos outros, para os não molestar, nem sei se eles perceberam daí em diante alguma diferença no trato do
Elisiário, em relação a mim. É certo, porém, que a diferença não era grande, nem o plano de "fazer-me um homem" foi além da simpatia e da
benevolência. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo até não
acabar. Não imaginas a eloquência desse homem, cálida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as ideias
arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficávamos os dous sós na
rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da
Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.
Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros
dias, encontrava-me sem alvoroço, quase sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte; era comum achá-lo
nos lugares mais distantes uns dos outros,
Botafogo,
São Cristóvão,
Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a
Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.
- Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.
Um dia encontrei-o na
rua de São José. Disse-lhe que ia ao
Castelo ver a
igreja dos Jesuítas, que nunca vira.
- Pois vamos, disse ele.
Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se
tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monástica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando saímos, e
fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário fez-me viver dous séculos atrás. Vi
a expedição dos franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as
figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida às cousas extintas e realidade às inventadas.
Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que é uma redução da
Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o
meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira
vez que a via. Soube que era ela pela falta dos braços.
- Oh! Admirável! - exclamei.
Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de cousas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da
Vênus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando uma porção
de hipóteses graciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e
transportava de uma rua estreita para diante do
Pártenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da
Hélade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.
Saímos; fomos até o
campo da Aclamação, que ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra polícia além da natureza, que
fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do
quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os olhos
pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:
- Adeus, Ioiô!
Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da
camisa. Vinha da
Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:
- Adeus, Zeferina.
Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos:
- Não se espante, menino. Há muitas espécies de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda
pelo contraste da manga curta e alva da camisa.
Eu, de vexado, não achei resposta.
Não contei esse episódio na
rua do Lavradio; podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que
veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a
jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito
tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas
travessas na plateia, ficava aflito com a ideia de não poder sair no meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o
terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora.
Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar das portas. Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do
sertão cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de
canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de
Eneias, citou Virgílio e
Camões, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos.
- Você era capaz de ir daqui a pé, até
São Cristóvão, agora? - perguntou-me na rua.
- Pode ser.
- Não, você está cansado.
- Não estou, vamos.
- Está cansado, adeus; até depois - concluiu.
Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, àquela hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de
longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na
rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das
calças. Atravessou o campo da Aclamação, enfiou pela
rua de São Pedro e meteu-se pelo
Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse
erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às
pernas. Fui andando atrás do Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na
rua de São Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou
outra patrulha, algum
tilbury, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao
cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o
saco do Alferes. Maré frouxa, apenas o ressonar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia
voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma
relutância, aceitaram a proposta.
Elisiário entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de matemáticas. Também eu
me achei perdido, longe da cidade e exausto. Valeu-me um tilbury, que atravessava o
campo de São Cristóvão, tão cansado como eu, mas piedoso e necessitado.
- Você não quis ir comigo anteontem a São Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito agradável. Chegando ao cais da Igrejinha, meti-me
num bote e vim desembarcar no saco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do
campo de Santa Ana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dous na
rua de São Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?
- Eu?
Não querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente:
- Eu? Eu também dormi como um justo.
- Justus, justa, justum.
Estávamos na casa da
rua do Lavradio. Elisiário trazia no peito da camisa um botão de coral, objeto de grande espanto e aclamação
da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com joias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes saíram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar
sapatos, Elisiário sacou o botão de coral e disse que me fosse calçar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceitá-lo à força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte
pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do
Norte, para restituir o botão ao Elisiário. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu!
- Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? - repliquei à proposta que me fez de ficar com a joia.
- Sim, disse e é verdade; mas para que me servem joias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão. Deveras, não o quer para si?
- Não, senhor; um presente...
- Presente de anos - continuou mirando a pedra com o olhar vago -. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco.
Tinha acabado de repor o botão na camisa.
- Fez anos, e não me disse.
- Para quê? Para visitar-me? Não recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que também faz o seu versinho, às vezes, e outro dia brindou-me com
um soneto impresso em papel azul... Lá o tenho em casa; não é mau.
- Foi ele que lhe deu o botão...
- Não, foi a filha... O soneto tem um verso muito parecido com outro de
Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras clássicas, além de ser excelente médico... Mas o melhor dele é a
alma...
Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens políticos, entenderam que o Elisiário daria um bom orador parlamentar. Não se opôs, pediu apenas aos inventores do
projeto que lhe emprestassem algumas ideias políticas; riram-se, e o projeto não foi adiante.
Quero crer que lhe não faltassem ideias, talvez as tivesse de sobra, mas tão contrárias umas às outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia,
liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um
partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da frequência, sem
ordem do dia, com direito de discutir
o anel de Saturno ou
os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisiário aceitaria o cargo, contanto que não fosse obrigado a estar
calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez.
Aí tens o que era esse homem fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem
passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Senão quando... Mas é muito falar sem fumar um charuto... Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse
retrato, descontando-lhe os olhos, que não saíram bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram isso; olhavam mais
para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derramavam-se por toda a parte.
Senão quando, uma tarde, já escuro, por volta das sete horas, apareceu-me na casa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três semanas que o não via, e, como tratava de fazer
exames, e passava mais tempo metido em casa, não me admirei da ausência nem cuidei dela. Demais, já me acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava
de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiário apareceu à porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé dele, perguntei-lhe por onde andara. Elisiário
abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, ele enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou
largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal
murmurei:
- Que é? Que foi?
- Tosta, casei-me sábado...
Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiário continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma
desgraça. Não sabia que respondesse à confidência, não acabava de crer na notícia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiário, qual a
recompus depois, não me aparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a supor alguma cousa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou
tísica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?
- Uma desgraça! - repetia baixinho, falando para si -. Uma desgraça!
Como eu me levantasse dizendo que ia acender uma vela, Elisiário reteve-me pela aba do fraque.
- Não acenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ela me não ame; ao contrário, morria por mim há
sete anos. Tem vinte e cinco... Boa criatura! Uma desgraça!
A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase não respirava; mas não ouvi grande cousa, pois o homem, depois de
algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o botão de
coral. Elisiário calou-se de repente, e depois de alguns instantes, como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo.
- O senhor deve conhecer-me...
- Conheço, e porque o conheço é que vim aqui. Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é
moço, Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Há de ser um suplício. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro
com meu sogro, mas não me procure.
Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhá-lo até à escada, era tarde; ia descendo os últimos degraus. O lampião de azeite alumiava mal a
escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.
Só dez meses depois tornei a ver o Elisiário. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao
Ceará, ver meu pai, durante as férias. Quando voltei, soube que ele fora ao
Rio Grande do Sul. Um dia,
almoçando, li nos jornais que chegara na véspera, e corri a buscá-lo. Achei-o em
Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim pouco maior que ela. Elisiário abraçou-me com alvoroço; falamos de
cousas passadas; perguntei-lhe pelos versos.
- Publiquei um volume em
Porto Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem
alguns erros; hei de fazer aqui uma segunda edição.
Elisiário deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse ali nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma cousa, e ia continuar a
lecionar, para ver se achava as impressões de outrora. Onde estavam os rapazes da
rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando cousas
análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para
jantar.
- Você ainda não viu minha mulher - disse ele. E indo à porta que dava para dentro -: Cintinha!
- Lá vou! - respondeu uma voz doce.
Dona Jacinta chegou logo depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando ele lhe
disse o meu nome, olhou para mim espantada.
- Não é um bonito rapaz?
Ela confirmou a opinião inclinando modestamente a cabeça. Elisiário disse-lhe que eu jantava com eles; a moça retirou-se da sala.
- Boa criatura - disse-me ele -; dedicada, serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago... Pena! Melhor que eles eram os botões que
faltavam. A sobrecasaca de outrora, lembra-se?
Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.
- Lembra-me.
- Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um epicédio, com uma epígrafe de
Horácio...
Jantamos alegremente. Dona Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloquência, como
outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisiário esquecia-se de nós, ela, de si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume dele concluir um discurso
desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de ideias? Deixava-se ir ainda pela música da palavra? Não sei; achei-lhe
o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas ocasiões a mulher calava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento, mas de admiração. Sucedeu isso duas
vezes. Em ambas chegou a ser bonita.
Elisiário disse-me, ao café, que viria comigo abaixo.
- Você deixa, Cintinha?
Dona Jacinta sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessário. Também ela falou no livro de versos do marido.
- Elisiário é preguiçoso; o senhor há de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe.
Meia hora depois descíamos a ladeira. Elisiário confessou-me que, desde que casara, não tivera ocasião de relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que
iríamos ao teatro.
- Mas você não avisou em casa...
- Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não se zanga por isso. Que teatro há de ser?
Não foi nenhum; falamos de outras cousas, e às nove horas tornou para casa. Voltei a
Santa Teresa poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.
- Foi a uma visita aqui mesmo
no morro - disse ela -; há de gostar muito de o ver.
Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pô-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava dele, se era um
grande espírito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe
o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar à minha opinião a mesma ênfase.
- Faz bem em ser amigo dele - concluiu -; ele sempre me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito sério.
O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada cousa em seu lugar, obra visível da mulher. Daí a pouco entrou Elisiário, com a gravata no
pescoço, o laço na frente, a barba rapada, correto e em flor. Só então notei a diferença entre este Elisiário e o outro. A incoerência dos gestos era já menor, ou estava prestes
a acabar inteiramente. A inquietação desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha.
- Não, senhora, vamos primeiro ao latim - bradou o marido.
Dona Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro que estava lendo quando eu cheguei.
- Tosta é de confiança - continuou Elisário -, não vai dizer nada a ninguém.
E voltando-se para mim:
- Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma é que quis aprender.
Não crendo o que ele me dizia, quis poupar à moça a lição de latim, mas foi ela própria que me dispensou o auxílio, indo buscar alegremente
a gramática do padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a lição, como um simples aluno. Ouvia com atenção, articulava
com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar à lição de história; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me não
roubá-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito aquela escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava pedi-la.
Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia só
almoçar. Dona Jacinta era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a
compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apesar do latim e da história que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os
cabelos lisos e não trazia joia alguma; podia ser afetação, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.
Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiário à minha espera, à porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que
tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de
musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, eles não eram ricos, nem nós, tão comilões; entravam as
que podiam. Era ao almoço que Elisiário, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma cousa. Improvisava décimas - ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais
tarde, foi diminuindo o número delas, e para diante não passava de duas ou de uma. Dona Jacinta pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copiávamos logo, a
lápis, com retificações que ele fazia, rindo:
- Para que querem vocês isso?
Afinal perdeu o costume, com grande mágoa da mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração, fácil; faltava-lhes só o calor antigo.
Um dia perguntei a Elisiário por que não reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter saído com incorreções; eu ajudaria a ler as provas. Dona Jacinta
apoiou com entusiasmo a proposta.
- Pois, sim - disse ele, um dia destes -; começaremos domingo.
No domingo, D. Jacinta, estando a sós comigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro.
- Não, senhora, deixe estar.
- Não enfraqueça, se ele quiser adiar o trabalho - continuou a moça -; é provável que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se
zanga, que não volta cá...
Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda
assim gastamos meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro.
- Desta vez, vencemos - disse eu.
Dona Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiança, e passou da alegria ao abatimento.
- Elisiário está preguiçoso. Há de ver que não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão à força de muito pedido, e poucos? Podia escrever
também, quando mais não fosse alguns daqueles discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas
vezes para escrever o que ele mandar... Chego a preparar o papel, pego na pena e espero, ele ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto.
- Nem sempre estará.
- Pois sim; mas então declaro que estou pronta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os
planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em
Porto Alegre foi bem recebido, podia animá-lo.
- Animá-lo? Mas ele não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem.
- Não é verdade? - disse ela chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! Tanto talento perdido!
- Nós o acharemos; hei de tratá-lo como se ele fosse mais moço que eu. O mau foi deixá-lo cair na ociosidade...
Elisiário tornou com um exemplar do livro. Não trazia tinta nem pena; ela foi buscá-las. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar não só os erros de
imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era
interrompido com a história das poesias, a notícia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente
fizemos pouco: não passamos de vinte páginas. Elisiário confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele.
Dona Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa de emendar o livro; ele veria depois o texto emendado e pronto. Elisiário respondeu que não, que ele
mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor
escrevendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e, antes de o
propor, tratamos de compilá-lo. O todo precisava de revisão; Elisiário consentiu em fazê-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios discursos iam
acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós falamos; não era já nem sombra daquela catadupa de ideias, de imagens, de frases, que mostravam no orador um
poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido.
Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela própria foi mudando também. Não instava já pela
composição de versos novos, nem pela correção dos velhos. Ficou tão desinteressada como ele. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de
letras. Dona Jacinta buscava não tocar em tal assunto, que era penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisiário compôs um soneto em honra minha; mas
já lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo.
Dona Jacinta vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não se compreenderá bem, senão sabendo as origens da afeição que a levara ao casamento.
Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiário acreditou que sim, e o disse, porque o pai dela pensava
que era deveras um amor como os outros. A verdade, porém, é que o sentimento de D. Jacinta era pura admiração. Tinha uma paixão intelectual por esse homem, nada
mais, e nos primeiros anos não pensou em casar com ele. Quando Elisiário ia à casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os
versos, novos ou velhos - os que trazia de cor e os que improvisava ali mesmo. Possuía boa
cópia deles. Mas, ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admirá-lo. Elisiário, que
a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça. Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e que havia nela um sentimento de
poesia e de arte que a faziam superior. O apreço em que a tinha era grande, mas não passava disso.
Assim se passaram anos. Dona Jacinta começou a pensar em um ato de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias perdidos, as noitadas, a incoerência e o
desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estímulo, nenhuma ambição de futuro. Dona Jacinta acreditava no gênio de Elisiário. Muitos
eram os admiradores; nenhum tinha a fé viva, a devoção calada e profunda daquela moça. O projeto era desposá-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambição que não
tinha, o estímulo, o hábito do trabalho regular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em cousas fúteis ou conversas ociosas, comporia
obras de fôlego, nas boas horas, e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difícil obter a
colaboração do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da ação; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o amava deveras.
Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrifício. Talvez mais
de um tentasse casar com ela. Dona Jacinta não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a ideia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência.
O resultado foi inteiramente oposto às esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o
fim dos tempos nem lia já obras de arte. Dona Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela língua
sublime em que cuidou falar às ambições de um grande espírito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma
inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiário, perdeu a única
vantagem a que se propusera no sacrifício.
Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que
não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com ele, que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o
método não dariam cabo do poeta, se a poesia nele não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu
amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi há muito, concluiu Tosta, beijando a mulher.
Corpora
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