Papéis velhos

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Papéis velhos  * 
Brotero é deputado. Entrou agora mesmo em casa, às duas horas da noite, agitado, sombrio, respondendo mal ao
moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquilo, e ordenando-lhe, finalmente, que o
deixe só. Uma vez só, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete, com os olhos no teto e o charuto na boca. Não pensa
tranquilamente; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janela, passeia, para no meio da sala, batendo com o
pé no chão; enfim resolve ir dormir, entra no quarto, despe-se, mete-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete.
Mal se sentou outra vez no canapé, bateram três horas no relógio da casa. O silêncio era profundo; e, como a divergência dos relógios é o princípio fundamental da relojoaria, começaram todos os relógios da vizinhança a bater, com intervalos desiguais, uma, duas, três horas. Quando o espírito padece, a cousa mais indiferente do mundo traz uma intenção recôndita, um propósito do destino. Brotero começou a sentir esse outro gênero de mortificação. As três pancadas secas, cortando o silêncio da noite, pareciam-lhe as vozes do próprio tempo, que lhe bradava: "Vai dormir". Enfim, cessaram; e ele pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando: 
- Não há outro alvitre, é isto mesmo. 
Dito isso, foi à secretária, pegou da pena e de uma folha de papel, e escreveu esta carta ao presidente do
conselho de ministros:
>                                                                                                                                                                                     
Excelentíssimo senhor,
Há de parecer estranho a V. Exa tudo o que vou dizer neste papel; mas, por mais estranho que lhe pareça, e a mim também, há situações tão extraordinárias que só comportam soluções extraordinárias. Não quero desabafar nas esquinas, na
                rua do Ouvidor, ou nos corredores da
                Câmara. Também não quero manifestar-me, na tribuna, amanhã ou depois, quando V. Exa for apresentar o programa do seu ministério; seria digno, mas seria aceitar a cumplicidade de uma ordem de cousas, que inteiramente repudio. Tenho um só alvitre: renunciar à cadeira de deputado e voltar à vida íntima.
Não sei se, ainda assim, V. Exa me chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá razão. Mas rogo-lhe que advirta que há duas qualidades de despeito, e o meu é da melhor.                
Não pense V. Exa que recuo diante de certas deputações influentes, nem que me senti ferido pelas intrigas do A... e por tudo o que fez o B... para meter o C... no ministério. Tudo isso são cousas mínimas. A questão para mim é de lealdade, já não digo política, mas pessoal; a questão é com V. Exa. Foi V. Exa que me obrigou a romper com o ministério dissolvido, mais cedo do que era minha intenção, e, talvez mais cedo do que convinha ao partido. Foi V. Exa que, uma vez, em casa do Z... me disse, a uma janela, que os meus estudos de questões diplomáticas me indicavam naturalmente a
                pasta de estrangeiros. Há de lembrar-se que lhe respondi então ser para mim indiferente subir ao ministério, uma vez que servisse ao meu país. V. Exa replicou: - É muito bonito, mas os bons talentos querem-se no ministério.
Na Câmara, já pela posição que fui adquirindo, já pelas distinções especiais de que era objeto, dizia-se, acreditava-se que eu seria ministro na primeira ocasião; e, ao ser chamado V. Exa ontem para organizar o novo gabinete, não se jurou outra cousa. As combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas elas. É que ninguém ignorava as finezas de V. Exa para comigo, os bilhetes em que me louvava, os seus reiterados convites, etc. Confesso a V. Exa que acompanhei a opinião geral. 
A opinião enganou-se, eu enganei-me; o ministério está organizado sem mim. Considero esta exclusão um desdouro irreparável, e determinei deixar a cadeira de deputado a algum mais capaz, e, principalmente, mais dócil. Não será difícil a V. Exa achá-lo entre os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima e consideração, 
De V. Exa desobrigado amigo, 
BROTERO.
Os verdadeiros políticos dirão que esta carta é só verossímil no despeito, e inverossímil na resolução. Mas os verdadeiros políticos ignoram duas cousas, penso eu. Ignoram
Boileau, que nos adverte da possível inverossimilhança da verdade, em matérias de arte,
e a política, segundo a definiu um padre da nossa língua, é a arte das artes; e ignoram que um outro golpe feria a
alma do Brotero naquela ocasião. Se a exclusão do ministério não bastava a explicar a renúncia da cadeira, outra perda a ajudava. Já têm notícia do desastre político; sabem que
houve crise ministerial, que o conselheiro *** recebeu do
Imperador o encargo de organizar um gabinete, e que a diligência de um certo B... conseguiu meter nele
um certo C... A pasta deste foi justamente a de estrangeiros; e o fim secreto da diligência era dar um lugar na galeria do Estado à viúva Pedroso. Esta senhora, não
menos gentil que abastada, elegera dias antes para seu marido o recente ministro. Tudo isso iria menos mal, se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a
viúva; mas, cobiçá-las, cortejá-las e perdê-las, sem que ao menos uma viesse consolá-lo da perda da outra, digam-me francamente se não era bastante a explicar a renúncia
do nosso amigo?
Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a, sobrescritou-a; depois atirou-a a um lado, para remetê-la no dia seguinte.
O destino lançara os dados. César transpunha o Rubicão, mas em sentido inverso. Que fique Roma com os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis! Ele volve à região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas de
aparato, sem utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos quando se levantou; e levantou-se, porque ouviu bater quatro horas e
recomeçar a procissão dos relógios, a cruel e implicante monotonia das pêndulas. Uma, duas, três, quatro...
Não tinha sono; não tentou sequer meter-se na cama. Entrou a andar de um lado para outro, passeando, planeando, relembrando. De memória em memória, reconstruiu as ilusões de
outro tempo, comparou-as com as sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dor, mirou afincadamente essas ilusões perdidas, como uma velha contempla as suas
fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia que, em todas as dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que futuro? Ele não via nada. E foi-se achegando da
secretária, onde tinha guardadas as cartas dos amigos, dos amores, dos correligionários políticos, todas as cartas. Já agora não podia conciliar o sono; ia reler esses papéis
velhos. Não se releem livros antigos? 
Abriu a gaveta; tirou dois ou três maços e desatou-os. Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de
cemitério; donde se pode inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E ele começou a relê-las, uma a uma, as de dez páginas e os simples bilhetes, mergulhando
nesse mar morto de recordações apagadas, negócios pessoais ou públicos, um espetáculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um discurso, uma tolice, uma
confidência amorosa. Uma das cartas, assinada Vasconcelos, fê-lo estremecer: "A L...a", dizia a carta, 
chegou a São Paulo, anteontem. Custou-me muito e muito obter as tuas cartas; mas alcancei-as, e daqui a uma
            semana estarão contigo; levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na tua de H... estimo que tenhas perdido a tal ideia fúnebre; era um despropósito. Conversaremos à vista.
Esse simples trecho trouxe-lhe uma penca de lembranças. Brotero atirou-se a ler todas as cartas do Vasconcelos. Era um companheiro dos primeiros anos, que naquele tempo
cursava a academia, e agora
estava de presidente no Piauí. Uma das cartas, muito anterior àquela, dizia-lhe:
Com que então a L ... a agarrou-te deveras? Não faz mal; é boa moça e sossegada. E bonita, maganão! Quanto ao que me dizes do Chico Sousa, não acho que devas ter nenhum
              escrúpulo; vocês não são amigos; dão-se. E depois, não há adultério. Ele devia saber que quem edifica em terreno devoluto...
Treze dias depois: 
Está bom, retiro a expressão terreno devoluto; direi terreno que, por direito divino, humano e diabólico, pertence ao meu amigo Brotero. Estás satisfeito? 
Outra, no fim de duas semanas:
Dou-te a minha palavra de honra que não há no que disse a menor falta de respeito aos teus sentimentos; gracejei, por supor que a tua paixão não era tão séria. O dito por não
             dito. Custa pouco mudar de estilo, e custa muito perder um amigo, como tu...
Quatro ou cinco cartas referiam-se às suas efusões amorosas. Nesse intervalo o Chico Sousa farejou a aventura e deixou a L... a; e o nosso amigo narrou o lance ao
Vasconcelos, contente de a possuir sozinho. O Vasconcelos felicitou-o, mas fez-lhe um reparo. 
... Acho-te exigente e transcendente. A cousa mais natural do mundo é que essa moça, perdendo um homem a quem devia atenções e que lhe dera certo relevo, recebesse
                com alguma dor o golpe. Saudade, infidelidade, dizes tu. Realmente, é demais. Isso não prova senão que ela sabe ser grata aos benefícios recebidos. Quanto à ordem que
                lhe deste de não ficar com um só traste, uma só cadeira, um pente, nada do que foi do outro, acho que não a entendi bem. Dizes-me que o fizeste por um sentimento de
                dignidade; acredito. Mas não será também um pouco de ciúme retrospectivo? Creio que sim. Se a saudade é uma infidelidade, o leque é um beijo; e tu não queres beijos
                nem saudades em casa. São maneiras de ver...
Brotero ia assim relendo a aventura, um capítulo inteiro da vida, não muito longo, é verdade, mas cálido e vivo. As cartas abrangiam um período de dez meses; desde o
sexto mês começaram os arrufos, as crises, as ameaças de separação. Ele era ciumento; ela professava o aforismo de que o ciúme significa falta de confiança; chegava
mesmo a repetir esta sentença vulgar e enigmática: "zelos, sim, ciúmes, nunca". E dava de ombros, quando o amante mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia alguma
exigência. Então ele excedia-se; e aí vinham as cenas de irritação, de reproches, de ameaças, e por fim de lágrimas. Brotero às vezes deixava a casa, jurando não
voltar mais; e voltava logo no dia seguinte, contrito e manso. Vasconcelos reprimia-o de longe; e, em relação às deixadas e tornadas, dizia-lhe uma vez: 
Má política, Brotero; ou lê o livro até o fim, ou fecha-o de uma vez; abri-lo e fechá-lo, fechá-lo e abri-lo é mau, porque traz sempre a necessidade de reler o
               capítulo anterior para ligar o sentido, e livros relidos são livros eternos.
A isto respondia o Brotero que sim, que ele tinha razão, que ia emendar-se de uma vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu.
Os anjos dissolveram a sociedade. Parece que o anjo L...a, exausto da perpétua antífona, ouviu cantar
Dáfnis e Cloé, cá embaixo, e desceu a ver o que é que podiam dizer tão melodiosamente as duas criaturas. Dáfnis
vestia então uma casaca e uma comenda, administrava um banco, e pintava-se; o anjo repetiu-lhe a lição de Cloé; adivinha-se o resto. As cartas de Vasconcelos neste período
eram de consolação e filosofia. Brotero lembrou-se de tudo o que padeceu, das imprudências que praticou, dos desvarios que lhe trouxe aquela evasão de uma mulher, que
realmente o tinha nas mãos. Tudo empregara para reavê-la e tudo falhara. Quis ver as cartas que lhe escreveu por esse tempo, e que o Vasconcelos, mais tarde, pôde
alcançar dela em
São Paulo e foi à gaveta onde as guardara com as outras. Era um maço atado com fita preta. Brotero sorriu da
fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou nada, data ou vírgula; leu tudo, explicações, imprecações, súplicas, promessas de amor e paz, uma fraseologia
incoerente e humilhante. Nada faltava a essas cartas; lá estava o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler, mas
supunha-se. A frase era esta: "Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...". Uma traça bifara o resto da
palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças. A primeira
causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem muito.
A última carta falava de suicídio. Brotero, ao reler esse tópico, sentiu uma cousa indefinível; chamemos-lhe o "calafrio do ridículo evitado". Realmente, se ele se
houvesse eliminado, não teria o presente desgosto político e pessoal; mas o que não diriam dele nos pasmatórios da
rua do Ouvidor, nas conversações à mesa? Viria tudo à rua, viria mais alguma cousa; chamar-lhe-iam
frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro assunto, uma ópera, por exemplo.
- Uma, duas, três, quatro, cinco, principiaram a dizer os relógios. 
Brotero recolheu as cartas, fechou-as uma a uma, emaçou-as, atou-as e meteu-as na gaveta. Enquanto fazia esse trabalho, e ainda alguns minutos depois, deu-se a um
esforço interessante: reaver a sensação perdida. Tinha recomposto mentalmente o episódio, queria agora recompô-lo
cordialmente; e o fim não era outro senão cotejar o efeito e a causa, e saber se a ideia do suicídio tinha
sido um produto natural da crise. Logicamente, assim era; mas Brotero não queria julgar através do raciocínio e sim da sensação.
Imaginai um soldado a quem uma bala levasse o nariz, e que, acabada a batalha, fosse procurar no campo o desgraçado apêndice. Suponhamos que o
acha entre um grupo de braços e pernas; pega dele, levanta-o entre os dedos - mira-o, examina-o, é o seu próprio... Mas é um nariz ou um cadáver
de nariz? Se o dono lhe puser diante os mais finos perfumes da
Arábia, receberá em si mesmo a sensação do aroma? Não: esse cadáver de nariz nunca mais lhe
transmitirá nenhum cheiro bom ou mau; pode levá-lo para casa, preservá-lo, embalsamá-lo; é o mesmo. A própria ação de assoar o nariz, embora ele a veja
e compreenda nos outros, nunca mais há de podê-la compreender em si, não chegará a reconhecer que efeito lhe causava o contato da ponta do nariz com o
lenço. Racionalmente, sabe o que é; sensorialmente, não saberá mais nada.
"Nunca mais?" pensou o Brotero. "... Nunca mais poderei ..." 
Não podendo obter a sensação extinta, cogitou se não aconteceria o mesmo à sensação presente, isto é, se a crise política e pessoal, tão dura de roer agora, não teria algum
dia tanto valor como os velhos diários, em que se houvesse dado a notícia do novo gabinete e do casamento da viúva. Brotero acreditou que sim. Já então a arraiada vinha
clareando o céu. Brotero ergueu-se; pegou da carta que escrevera ao presidente do conselho, e chegou-a à vela; mas recuou a tempo. 
"Não", disse ele consigo; "juntemo-la aos outros papéis velhos; inda há de ser um nariz cortado".
Papéis avulsos
PAPÉIS AVULSOS
Machado de Assis 
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA 
Papéis avulsos é o terceiro livro de contos de Machado de Assis e foi publicado pela primeira vez em volume no ano de 1882. Antes, todas as 12 histórias já tinham sido publicadas na imprensa, em periódicos diversos (entre os quais A Estação, A Época e Gazeta de Notícias), de novembro de 1875 a outubro de 1882.  A edição em volume, que apareceu em novembro de 1882, foi a única em vida do autor. Quando o livro saiu, Machado já era um autor consagrado, tendo publicado àquela altura cinco romances: Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878) e Memórias póstumas de Brás Cubas (1880, na Revista Brasileira e em livro, em 1881); e as coletâneas Contos fluminenses (1869) e Histórias da meia-noite (1873).
É consenso entre os estudiosos da obra machadiana que este livro representa uma "virada" na obra em contos do autor, tanto
quanto Memórias póstumas de Brás Cubas representou o início de uma "nova fase" na ficção de Machado de Assis em romances. É claro que a divisão da obra de
Machado em fases é hoje considerada pouco adequada, uma vez que se reconhece amplamente que seus romances e contos iniciais já apresentam características que o
autor viria a desenvolver plenamente na sua maturidade de escritor. No entanto, é inegável que, a partir de cerca de 1880, a ficção machadiana ganha em
textura, densidade, complexidade. Segundo José Guilherme Merquior, a significação profunda da obra de Machado de Assis (e presume-se que o crítico se referisse à
produção machadiana de Memórias póstumas em diante) reside em ter introduzido nas letras brasileiras a problematização da vida, que, para o crítico carioca, é a
grande marca da literatura da civilização industrial, marca com a qual Machado fez com que a produção literária brasileira entrasse em diálogo com as vozes decisivas da
literatura ocidental nota 1. Não cabe nesta introdução discorrer sobre os traços de Memórias póstumas de Brás Cubas que o caracterizam como diferente dos romances
anteriores. Cabe, sim, perguntar o que Papéis avulsostem de especial, a ponto de ser considerado o primeiro grande livro de contos do autor.
John Gledson mostra, na introdução da edição Penguin-Companhia das Letras de Papéis avulsos (2011), exatamente esse caráter especial que a obra tem. Começa por
esclarecer que com ela Machado, enfim, se dá o direito de se desamarrar e assumir seu tom irônico. Por tal atitude, pode-se perceber que esse é um momento crucial para sua
escrita em contos: o autor se metamorfoseia, deixa de ter um caráter "ingênuo" (se é que um dia Machado de Assis foi ingênuo) e passa a ser um escritor muito mais crítico e
sarcástico, às vezes até um pouco ácido nota 2.
Outro aspecto que torna este livro especial é o modo como foi produzido. Primeiramente, sua criação foi relativamente rápida, tendo saído em
volume em novembro de 1882, pouco depois da publicação na Gazeta de Notícias do último conto da coletânea, "Verba testamentária", em outubro
do mesmo ano. Em segundo lugar, é nesta obra que Machado irá repudiar, em ficção, o Realismo-naturalismo, contra o qual já havia publicado um ensaio
crítico em 1878 (o célebre "O primo Basílio", sobre o romance de Eça de Queirós) nota 3. Em terceiro lugar, lembra ainda Gledson, é nesse momento, imediatamente
posterior a Brás Cubas, que o autor parece assumir a escrita de uma literatura cujo compromisso com o Brasil é menos evidente do que em autores como
Alencar, por exemplo, mas nem por isso menos efetivo: ao criar personagens como o pai de Janjão ( de "Teoria do medalhão"), Machado de Assis ironiza toda uma
elite endinheirada e supostamente pensante, que vive somente da e na aparência.
Outra vertente que vem à tona em Papéis avulsos é o pastiche. Marcelo Diego demonstra que essa técnica revela o escritor maduro que, conscientemente, recria a
partir de outras obras e de outros gêneros nota 4. É o caso de "O segredo do Bonzo", "Na Arca", de certo
modo "Teoria do medalhão", "Conto alexandrino" e, ainda, "As academias de Sião" - todas narrativas, por assim
dizer, alegóricas, isto é, cujo sentido transcende as meras histórias que contam; ou seja: narrativas cujo modo de
expressão consiste em representar pensamentos, ideias e qualidades de forma figurada, exigindo do leitor um esforço de interpretação. Como resume Marcelo Diego,
Chamando para si outros registros e outras vozes, Machado adensa sua escrita e se permite
                transitar em realidades que são exclusivamente ficcionais: solidificando os pactos de veracidade, penetra
                em inextricáveis matizes do fantástico; pastichando narrativas inaugurais, instaura uma temporalidade que
                se sobrepõe ao tempo; relendo o cânone, inscreve-se nele nota 5.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis e com a preparada por Adriano da Gama Kury na hoje famosa coleção Machado de Assis, publicada pela Garnier-Itatiaia em 1988, em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa. Recorreu-se também à edição publicada em 2011 pela Penguin-Companhia das Letras, preparada por John Gledson e anotada por Hélio de Seixas Guimarães. Em caso de discrepância, foi consultada a primeira edição, existente na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Procurou-se respeitar alguns usos peculiares ao discurso do autor, mesmo quando inconsistentes. Em "O Alienista", por exemplo, o advérbio "talvez" é empregado modificando verbo no indicativo ("Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios [...]") e no subjuntivo ("Talvez fosse também um excesso de confiança [...]"), tal como é considerado gramaticalmente correto hoje.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas sempre que duas formas são consignadas em dicionários atuais, respeitou-se o que está na primeira edição: "regímen" (e não "regime"), "sumptuosa" (e não "suntuosa"), "gérmen" (e não "germe"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "cousa" e "coisa", entre "dous" e "dois" e entre "calefrio" e "calafrio". Manteve-se a dupla preposição em "A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita", como é até hoje usual em Portugal. Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos, bem como para instituições.
Preservaram-se palavras e expressões estrangeiras na língua original, mesmo quando já delas existe forma aportuguesada: "con amoré" (e não "com amor"), "tilbury" (e não "tílburi") "reporters" (e não "repórteres"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma em que aparecem na primeira edição ("75 por cento", mas "cento e oitenta"). Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. 
Quanto aos hiperlinks, além das referências histórico-literárias e culturais (dentre estas, não se fez nota para "Deus" e para "diabo" quando eram parte de uma expressão congelada, como "Deus sabe o que faz" ou "Vá para o diabo"), anotaram-se também palavras que o autor usa em sentido diverso do que é corrente na atualidade, como "trocado", com o significado de "trocadilho". Procedeu-se assim também em relação a expressões idiomáticas hoje em desuso: "Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa xira, das belas damas [...]", em que "boa xira" significa "boa vida", "bom passadio".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Saiu o homem magro, e voltou logo depois".
Respeitou-se o uso da vírgula antes de "etc." por ser recorrente na prosa do autor. Respeitou-se igualmente o emprego da vírgula usada para separar o sujeito de seu verbo sempre que nisso se identificou um gesto estilístico do autor: "Quem podia, emigrava." Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo: "os prêmios são poucos, os malogrados, inúmeros". Assim também se procedeu quando o objeto direto é anteposto ao verbo: "Os exemplos, achou-os na história e em Itaguaí."
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. No entanto, no conto "As bodas de Luís Duarte", há uma fala no meio do parágrafo, e foram usadas aspas porque abrir novo parágrafo pareceu demasiado.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento e Karen Nascimento de Souza (que, além de ter contribuído na pesquisa dos hiperlinks, redigiu parte desta introdução), atuais bolsistas de Iniciação Científica; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
 Marta de Senna, pesquisadora
Karen Nascimento de Souza, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq
novembro de 2012  
Advertência 
Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa. 
Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente que, se há aqui páginas que parecem meros contos e outras que o
não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com
São João e
Diderot.
O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido, que tem sabedoria". Menos a sabedoria, cubro-me com aquela
palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista:
é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.
Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a absolvição.
Machado de Assis
Outubro de 1882

Corpora

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