O que são as moças

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O que são as moças  * 
Capítulo primeiro  
Diz-se muita cousa feroz a respeito da amizade das mulheres. Ora, este conto tem por objeto a amizade de duas mulheres, tão firme, tão profunda, tão verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, davam às duas a designação de
Orestes e Pílades... de balão. Já se usava balão no tempo deste conto; isto é, as mulheres que haviam sido belas desde
Eva até dez anos atrás sem o auxílio da crinolina, imaginaram que sem a crinolina já não podiam agradar.
Se outras razões não
houvessem para suprimir a crinolina bastava a simples comparação entre... Mas não, leitoras, deste modo interrompo o romance e deito já em vosso espírito um germe de aversão pelo singelo escritor.
Tenho, pois, aqui a história de duas mulheres amigas e unidas como carne e unha. Razões de simpatia e de convivência longa trouxeram esta amizade, que fazia a felicidade das famílias e a admiração de toda a gente. Uma chamava-se Júlia e a outra, Teresa. Esta tinha cabelos louros e era clara; aquela tinha-os castanhos e era morena. Eram estas as diferenças; no mais, igualmente belas e igualmente vestidas. Vestidas, sim, porque quando não estavam juntas, a primeira que acordava mandava perguntar à outra que vestido pretendia trajar naquele dia, e era assim que ambas sempre andavam vestidas do mesmo modo.
Imagine-se depois o resto. Nenhuma delas ia ao teatro, ao baile, ao passeio, sem a outra. À mesa de algum jantar, fosse ou não de cerimônia, o que esta comia, comia aquela, às vezes sem consulta, por simples inspiração.
Esta conformidade, tão ostensiva como era, não alterava o fundo da amizade, como acontece geralmente. Eram verdadeiramente amigas. Quando uma adoecia, a outra não adoecia, como devia ser, mas isto pela simples razão de que a doente não recebia um caldo que não fosse das mãos da outra. Talvez que esta simples circunstância influísse na cura. 
Ambas contavam a mesma idade, com diferença de dias. Tinham vinte anos. 
Já estou a ouvir uma pergunta da parte das leitoras, pergunta que naturalmente dará ainda mais interesse ao meu conto, pela simples razão de que não responderei a ela. 
A pergunta é esta. Aquelas duas almas, tão irmãs, tão conformes, namoravam acaso o mesmo indivíduo? A pergunta é natural e lógica, adivinho mesmo os terrores a que pode dar lugar o desenvolvimento dela; mas nada disso me demove do propósito de deixá-la sem resposta. 
O mais que posso dizer é que até o momento em que a nossa história começa o coração de ambas não havia ainda palpitado por amor, cousa rara nos vinte anos, idade em que a maioria das mulheres já conservam vinte maços de cartas,
correspondentes a outros tantos namorados inconstantes ou infelizes. Quero ao menos dotar as minhas heroínas destas duas singularidades.
Teresa é filha de um proprietário; Júlia é filha de um empregado público de ordem superior. Tinham as mães vivas e eram filhas únicas: não importa saber mais nada.
Teresa morava em
Catumbi. Júlia, nos
Cajueiros. Calculem daqui a maçada que levava o
moleque encarregado de ir dos Cajueiros ao Catumbi ou vice-versa para saber de que maneira se vestiam as duas amigas, que, como disse, até nisto queriam manter a mais perfeita conformidade!
Estamos no mês de junho. Faz algum frio. Júlia, retirada para o seu gabinete de trabalho, ocupa-se em terminar um bordado que destina mandar a Teresa. Tem a porta e janela
fechada por causa do frio. Trabalha com atividade para acabar o bordado naquele mesmo dia. Mas alguém vem interrompê-la: é uma mulatinha de dez anos,
cria de casa, que acaba de receber uma carta mandada por Teresa.
Júlia abre a carta e lê o seguinte:
Minha querida Júlia.
Talvez esta noite lá vá. Tenho cousas muito importantes a contar-te. Que romance, minha amiga! É para duas horas, senão mais. Prepara-te. Até logo! 
Tua do coração,
Teresa.
Júlia leu a carta, releu-a, e murmurou:
- Que singularidade!
Depois, escreveu as seguintes linhas em resposta a Teresa:
Vem, minha querida. Se não viesses ia eu! Há muito que te não vejo e quero ouvir-te e falar-te. Com que ouvidos te hei de ouvir, e com que palavras te hei de falar. Nem cinco horas. O melhor é vires dormir cá.  Tua,
Júlia.
O leitor compreende facilmente que as cousas muito importantes de que falava Teresa não
seria decerto nem a alça de fundos, nem a mudança de ministério, nem mesmo a criação de bancos. Aos vinte anos só há um banco: o coração; só há um ministério: o amor. As firmezas e as infidelidades são a alça e a baixa de fundos.
Daqui concebe o leitor, que é perspicaz, o seguinte: o negócio importante de Teresa é algum amor. 
E dizendo isto o leitor prepara-se para ver despontar no horizonte daquele coração virgem a primeira alva de um sentimento puro e ardente. Não serei eu que lhe impeça o prazer, mas só lho consentirei nos posteriores capítulos; neste não. Dir-lhe-ei somente, para melhor orientá-lo, que a visita prometida por Teresa não teve lugar por causa de visitas inesperadas que foram à casa dela. A moça arrepelou-se, mas não era possível vencer aquele obstáculo. Vingou-se porém; não deu palavra durante a noite e deitou-se mais cedo que de costume.
II 
Dous dias depois Teresa recebia de Júlia a seguinte carta:
Minha querida Teresa.
Quiseste contar-me não sei que acontecimento; dizes-me que preparas uma carta para isso. Enquanto espero a tua carta, escrevo-te eu uma para dar-te parte de um acontecimento meu.
Até nisto parecemos irmãs.
Ah! Se morássemos juntas seria a suprema felicidade; nós que juntas vivemos tão iguais.
Sabes que até hoje estou como a livre borboleta dos campos; ninguém tem feito bater o meu coração. Pois bem, chegou a minha vez.
Aí vais rir, minha cruelzinha, destas confidências; tu que não amas, vais zombar de mim, que me alistei nas bandeiras do amor.
Amo, sim, e não poderia deixar de fazê-lo, tão bela, tão interessante é a pessoa em questão.
Quem é? - perguntarás tu -. Será o Oliveira? O Tavares? O Luís Bento? Nenhum desses, descansa. Nem lhe sei o nome. Não é conhecido nosso. Vi-o apenas duas vezes, a primeira há oito dias, a segunda ontem. Verdadeiramente o amor descobriu-se ontem. Que belo rapaz! Se o visses ficavas a morrer por ele. Quisera fazer-te a pintura, mas não sei. É um belo rapaz, de olhos pretos, moreno, cabelos abundantes e da cor dos olhos; um par de bigodes grossos e pretos.
Tem passado aqui por nossa rua, às tardes entre as cinco e seis horas. Passa sempre a cavalo. Olha, Teresa, até o cavalo me parece adorável; cuido às vezes que está ensinado, porque ao passar em frente às nossas janelas, começa a saltar, como que me cumprimenta e agradece a simpatia que o dono me inspira.
Que tolices estou eu dizendo! Mas desculpa, minha Teresa, isto é amor. No amor sente-se muita cousa que não se sente de ordinário. Agora o sei.
Vais perguntar-me se ele gosta de mim, se repara em mim? Repara, posso afirmar-te; mas se gosta não sei. Porém é acaso possível que se repare muito em alguém sem gostar? A mim me parece que não. Talvez seja ilusão do meu coração e dos meus desejos.
Não sabes como isto me tem posto a cabeça tonta. Ontem mamãe reparou e me perguntou que tinha eu; respondi que nada, mas de tal modo que ela sacudiu a cabeça e disse baixinho: Ah! Amores, talvez!
Estive para abraçá-la, mas recuei e entrei para o quarto. Tenho medo que se saiba disto; entretanto, não creio que seja crime gostar de um moço bonito e bem educado, como ele parece ser. Que dizes tu?
Preciso dos teus conselhos. Tu és franca e és minha amiga verdadeira. Tuas palavras me servirão de muito. Se eu não tivesse uma amiga como tu, abafava com semelhante cousa.
Escreve-me, quero palavras tuas. Se quiseres o portador esperará; em todo o caso desejo que me respondas hoje.
Adeus, Teresa; até amanhã, porque eu e mamãe lá vamos. Escreve-me e sê sempre amiga da tua amiga,
Júlia.
III 
Teresa a Júlia:
Minha Júlia.
Apaixonada! Que me dizes tu? Pois é possível que achasses afinal o noivo do teu coração? E assim, sem mais nem menos, como uma chuva de verão, caindo no meio de um dia claro e bonito?
Dou-te do fundo d´alma os meus parabéns.
E se os dou não é simplesmente porque eu deseje a tua felicidade, é porque igualmente devo receber parabéns de tua parte. Sabes por que motivo? É porque também amo! Também, sim...
                Anch´io sono pittore! - como diz o
                mano Gabriel.
Vê como a sorte protege nossos corações. Seria para doer que só uma de nós se apaixonasse e deixasse a outra no inteiro abandono. Mas não;
                Deus nos uniu e não quer que caminhemos isoladamente. Dá-nos as mãos a ambas e quer que sigamos de braço dado pela alameda do amor. Pois caminhemos, minha querida. Irás com o teu namorado e eu irei com o meu.
Ah! O meu é um belo rapaz, é a mesma figura que pintas na tua carta. Se lhe soubesse o nome mandava dizer-to aqui; mas não sei, porque mal o tenho visto passar às tardes a cavalo. Também a cavalo, como o teu; que felicidade! Belos cabelos e belos olhos. Que olhos, minha Júlia! Mais bonitos que os meus, posso jurar. Nunca vi olhos assim. Parecem mágicos; não sei por quê, mas não posso fitá-los.
Já o vi cinco vezes. A segunda estava tão embebido para mim que foi quase esbarrar contra um carro.
Fiquei tão vexada! As Avelares, que moram defronte, puseram-se a falar entre si. Parece que descobriram. A mim não me importa que se riam ou não. É de inveja, porque eu duvido que haja um rapaz de gosto que as namore, tão feias são. A mais velha parece uma lagosta; a mais moça tem cara de periquito; a do meio é periquito e lagosta ao mesmo tempo. Mano Gabriel chama aquela gente - a família impossível. E olha que é.
Mas aqui vou eu já longe do meu namorado e dos nossos amores, que vão par a par. É, como te disse, uma verdadeira proteção da sorte. Aceitemo-la, minha Júlia; amemos juntas, sejamos felizes à mesma hora, para que a mesma hora nos transfira para o céu.
Nada de ideias tristes.
Cá fico, minha querida Júlia, à tua espera. 
Tua,
Teresa.
IV 
Júlia a Teresa.
Até logo. Escrevi este bilhete só para dizer-te que ele passou aqui ontem à tarde. Estou cada vez mais apaixonada. 
Adeus. 
Júlia.
V 
À noite do dia aprazado reuniram-se as duas amigas em
Catumbi. Pelas cartas que aí ficam escritas imaginem os leitores do tom em que foi a conversa. A sós, no gabinete de Teresa, puderam aquelas almas abrir-se e confiar uma à outra todos os segredos e todas as esperanças. Talvez chegassem a chorar; lágrimas naquela idade são como a chuva da primavera. Caem para deixar o céu mais belo e a terra mais jubilosa.
Dizia Teresa: 
- Tu não sabes, minha Júlia, como aquele moço me deixou o coração. Não penso senão nele. Já sonhei com ele duas vezes. A primeira foi um sonho de felicidade; a segunda foi um sonho terrível. 
- Ah! 
- Sonhei que o vi, no mesmo cavalo, rolar por um despenhadeiro abaixo. Dei um grito e acordei. Que sonho, meu Deus! 
- Felizmente era sonho. 
- É verdade. 
- Mas ainda me não contaste o primeiro sonho. 
- O primeiro... 
- Nada de vergonha; o primeiro sonho foi um sonho de felicidade, não? Pois conta. Não sou eu também confidente de felicidades? 
- Sonhei que estávamos em vésperas de casar. Ele, a sós comigo, no jardim do tio Mateus, jurava aos meus pés, pela centésima vez, que eu seria o último pensamento de sua vida. Acreditarás que chorei mesmo no sonho, e que quando acordei tinha os olhos úmidos? 
- Acredito, sim. 
- Foi este o primeiro sonho. E tu? Não tens sonhado? Conta-me tudo. 
- Não tenho sonhado, não; mas posso dizer que vivo em perpétuo sonho. Trago presente na memória a figura dele, de noite e de dia. É o mesmo ou talvez melhor que sonhar. 
- Também eu! - disse Teresa suspirando. 
Júlia continuou: 
- Olha, se eu fosse tão feliz que me casasse com ele, e se tu também te casasses com o teu, havíamos de morar juntas. Que vida feliz, hem? 
- Oh! Não fales! 
- O amor de um lado e a amizade do outro. Que felicidade! 
Bateram à porta do gabinete. 
Teresa perguntou quem era. 
- Sou eu - respondeu uma voz masculina. 
- É o mano Gabriel - disse ela voltando-se para Júlia. 
E foi abrir a porta.
Gabriel apareceu à porta. Era um rapaz simpático, muito parecido com a irmã. Tinha um ar de franqueza e de galhofa, sem excluir a delicadeza das maneiras, que o fazia querido das moças. 
- Conversavam? Queria saber em quê. Imagino que não era sobre as sandálias de
São Francisco de Paula.
- Cala a boca, herege! - disse Teresa.
- É heresia, sei, não precisa pôr mais na carta. Então sobre que conversavam as meninas? 
- Quer saber? - disse Júlia -. Sobre os indiscretos. 
- Passam em revista a humanidade. Pois eu aposto que não era sobre os indiscretos que falavam. Era talvez sobre amores. 
- Apre lá, mano! 
- Isso que tem entre moças?... A senhora minha irmã anda agora de namoro, sabe, D. Júlia? 
As duas moças trocaram um olhar. Teriam sido ouvidas? Gabriel olhava para a irmã com ar de quem tinha prazer em ver aquela confusão. Teresa, depois de um minuto de silêncio, aventurou estas palavras: 
- Quem lhe meteu estas cousas na cabeça? 
- Ah! Eu adivinho. 
- Pois enganou-se na adivinhação; mas se fosse verdade?... 
- Se fosse verdade era uma cousa muito natural, e por isso não sei por que motivo não havia eu de saber as cousas do teu coração. 
- Deus me livre! 
- Ora essa! - disse Gabriel sentando-se num
puff -, por que não havia eu de saber? Eu compreendo que D. Júlia não me conte os seus amores. Mas tu...
- Meus amores? - disse Júlia.
- Sim, senhora, sim, os seus amores. Aposto que também não os tem? 
- Não, tenho, é verdade. 
- Nada, a mim é que não engana; sei que os tem, não só a senhora, como Teresa; e eu, na qualidade de irmão de uma e criado de outra, hei de saber de tudo... É a minha resolução. 
- Tu ouviste? - perguntou Teresa a Gabriel. 
- Tudo.
- Ah! Que curioso! - exclamaram as duas. 
Gabriel ria-se para ambas e divertia-se interiormente com o embaraço em que ambas ficaram. As duas, não podendo suportar o olhar do moço, caíram nos braços uma da outra.
VI 
Poucos dias depois um baile reunia as duas famílias. Era um baile de anos da filha do Comendador ***. 
Pouco importa saber à nossa história quem eram os convidados, nem qual era o
toilette das senhoras, nem quais as mais belas, nem as mais adoráveis e adoradas.
Basta-nos saber que as duas heroínas deste conto primavam de graça e de gosto. Nisto a natureza e a arte as fizeram igualmente irmãs. Os leitores nos dispensam sem dúvida a descrição minuciosa do traje de cada uma delas. 
Mesmo nos bailes poucas vezes se separava Júlia de Teresa; em caso de força maior, resignavam-se, mas era para voltar logo a reunir-se. 
Gabriel achava-se presente a esse baile. 
Às dez horas da noite apareceu nos salões um cavalheiro que, por sua galharda presença e beleza original, começava a adquirir certa reputação. Era um filho de
Campos; muito jovem fora à
Europa, donde voltara havia poucos dias.
Antes que o moço convidado chegasse à saleta onde se achavam as duas heroínas, lá lhes chegara a fama. Uma natural curiosidade falou em ambas as criaturas. Vê-lo foi um pensamento que assaltou a um tempo o espírito de Júlia e de Teresa; mas ambas julgaram que deviam ir ao
toilette ver mais duas amigas que lá as esperavam no fundo do vidro de um espelho, muito parecidas com elas, e talvez mais amigas ainda de cada uma delas, do que elas o eram entre si.
Foram. 
Uma mulher tem sempre uma fita a prender, um fio de cabelo a arranjar, quando se trata de ver um homem pela primeira vez, ou mesmo pela segunda, ou mesmo pela centésima vez. 
É por assim dizer as armas que elas dispõem para entrar no duelo da casquilhice, duelo onde não há necessidade de cartel nem de testemunhas.
Arranjada a fita ou o cabelo, ou, como talvez acontecesse, porque neste ponto a tradição é obscura, feita unicamente uma simples e rápida inspeção, dispunham-se as duas amigas a voltar ao salão. 
Júlia ia adiante; com uma das mãos afastou o reposteiro para sair; mas Teresa, do outro lado, fez o mesmo, e ambas puseram o pé fora da porta ao mesmo tempo, quando por um rápido movimento tornaram a entrar. 
Olharam-se. 
- Lá está ele! - disseram ambas. 
- Ele quem? - perguntou Teresa. 
- O meu namorado - respondeu Júlia -. E o teu também está? 
- Também. 
Fora, com efeito, passeavam alguns cavalheiros. 
As duas amigas colaram o olho a uma fresta do reposteiro e começaram a indicar uma à outra quem era o dono do coração. 
Momentos depois desta investigação feita em voz baixa, e com a respiração compressa, olharam-se com espanto: 
- É o mesmo! 
Esta exclamação partiu de ambas. 
Em tais ocasiões há sempre um momento de silêncio, ainda quando se trata de corações tão intimamente ligados como eram aqueles dous. 
Com efeito, o acaso, autor de muitos lances imprevistos, preparara às duas amigas aquela circunstância engenhosa de ambas se apaixonarem pelo mesmo indivíduo. Era naturalmente o que lhes poderia acontecer de pior. 
O silêncio que houve entre as duas amigas deu lugar a que muitas reflexões fizessem ambas sobre tão extraordinária situação. Mas, prolongá-lo era empiorar as cousas. Foi Teresa quem falou em primeiro lugar. 
- Na verdade, é preciso que a sorte nos reserve como eterno exemplo de confraternidade para que nos aconteça tão singular encontro. 
- É verdade - disse Júlia. 
- Era o primeiro, e por desgraça é o mesmo. 
- Dizes bem, por desgraça, porque... tu o amas, não? 
- Muito. E tu? 
- Tanto como tu. É uma desgraça. 
As duas amigas foram sentar-se tristes. Creio até que uma lágrima rolou-lhes pela face, como se já de antemão estivessem a chorar o bem que iam perder mediante um ato de suspiro. 
Estiveram assim durante algum tempo. 
Depois Teresa levantou-se e foi a Júlia. 
- Minha querida, somos irmãs pelo coração; se o teu amor é forte, se dele depende a tua vida, seja a conquista unicamente tua. Consola o teu coração e não te importes comigo. 
- Isso não - respondeu Júlia levantando-se -. Em nome de quê devo eu consentir esse sacrifício? Não chorar para ver-te chorar, Teresa, prefiro morrer! 
Tamanho interesse, duvido eu que alguém tenha visto, sobretudo com o ar de convicção sincera daquele; era um espetáculo que eu sinto ter sido apenas observado pelos espelhos do
toilette e pela pena do romancista, que penetra até no íntimo do pensamento.
Todavia, se aquela luta da recusa do namorado em questão se prolongasse mais algum tempo, corria o risco de ser monótona. Parece que ambas compreenderam isto, porque trataram de pôr termo a ela. 
Ocorreu, porém, a ambas uma ideia que até ali não tinha aparecido. Foi Teresa quem primeiro a enunciou. 
- Mas, dize-me cá, se ele nos iludir a ambas? Não disseste que ele parecia corresponder-te? 
- Correspondia. 
- Também a mim. 
- Enganava a ambas. 
- Enganava. Isto é importante. Nós nos doíamos de amor por ele, sem sabermos que ambas fazíamos convergir o nosso espírito para um mesmo ponto, e ele, contente por contar com o coração de ambas, de ambas se ria entre si. 
- Parece que é verdade isso. 
- É, sem dúvida. 
Juntou-se ao desgosto da situação um grão de despeito. Era o sal que faltava. Devo mesmo dizer que se não houvesse aquele despeito tão natural, o coração das duas moças sofreria dobradamente. Até então apenas tinham a idealidade de uma má fortuna contra quem exalar os seus suspiros e clamores; agora tinham diante de si um ente vivo, humano, a causa da situação aflitiva a que eram levadas. 
Assim quê, uma vez concordes em que o moço zombava delas, as duas moças ficaram igualmente acordes num ponto: era que ele não devia entrar nas suas preocupações, posto que tão indigno se mostrara. 
Mas, quem pode responder pelo coração? Era ainda o coração quem as animava contra o jovem namorado comum. Enganavam-se, talvez; venceria o amor ou a amizade? É o que as leitoras vão saber se tiverem a paciência de passar aos capítulos seguintes. 
VII 
Não pertenço ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma cegueira completa para a averiguação de certos pontos das suas narrativas. Fica entendido que o leitor sabe já que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrado às 10 horas na casa do Comendador ***, causando tanto abalo aos convidados, eram uma e a mesma pessoa. 
Isto posto, direi mais duas palavras sobre o misterioso namorado. Já disse que chegara da
Europa e que era um guapo rapaz. Acrescentarei que se chama Daniel. Tem 25 anos de idade. Profissão: duzentos contos em títulos da dívida pública e prédios inscritos nas companhias de seguro contra o fogo. Era gastador, mas gastava com certa conta; isto por experiência, visto que os duzentos contos eram já os restos de uma fortuna de oitocentos que lhe deixara o pai.
Tal é em traços largos o namorado das duas raparigas, que o seria de quantas quisesse, tão próprio a inspirar amores era ele. 
Júlia e Teresa tinham saído para o salão. 
Não viram Daniel.
Mas, na ocasião em que se anunciava uma quadrilha, viram aproximar-se do lugar em que elas estavam Daniel e Gabriel: Daniel era míope; quando pôs a luneta e conheceu as duas raparigas fez um gesto de surpresa. Não convinha, porém, mostrar-se conhecido de nada, e para logo se acalmou. Gabriel conduziu-o, apresentou-o às duas amigas, e disse para sua irmã que dançasse com ele. 
- Tenho par - murmurou Teresa. 
- Tens, é verdade - disse Gabriel -, mas o teu par sou eu. Ora, eu cedo em favor de Daniel.
Não era possível recuar. Todavia, Teresa não quis decidir-se sem consultar Júlia com o olhar.
Júlia levantou simplesmente os ombros; Teresa adivinhou o movimento e tomou o braço de Daniel. 
Gabriel voltou-se para Júlia e disse: 
- Se não tem par, D. Júlia. O meu
vis-à-vis é Daniel.
- Não tenho - respondeu a moça.
Nesse momento soara o sinal da quadrilha. Júlia levantou-se e aceitou o braço do irmão de Teresa. Iam tomar lugar em frente de Teresa e Daniel, quando um cavalheiro se apresentou reclamando uma quadrilha de Júlia, a qual dizia ser aquela. 
- Eu me enganei; o meu par era este cavalheiro. 
O moço não insistiu. 
Júlia corou. Tinha faltado à verdade e acabava de cometer uma imprudência; mas apenas se achou diante do par Teresa e Daniel, a moça esqueceu tudo, e cravou na amiga um olhar inteligente e indagador. 
Entretanto a quadrilha começou e seguiu o seu curso. Daniel conversava muito com Teresa; esta respondia-lhe por monossílabos; mas de certo ponto em diante parecia interessar-se menos que ao princípio.
Qual seria o motivo da conversa? 
Era esta a pergunta que Júlia fazia consigo. Mas não podendo saber logo, ardia por ver a quadrilha acabada. A quadrilha acabou; apenas se achou a sós com Teresa perguntou-lhe curiosa qual o objeto do diálogo que tivera com Daniel; Teresa respondeu que ele fizera correr a conversa sobre banalidades, que era um homem aborrecido e comum. 
Isto tranquilizou a outra. 
Dançou-se ainda algumas quadrilhas. Era já uma hora da noite. A família de Teresa, a instâncias desta, adiara a saída.
Gabriel apareceu de repente a Júlia levando pelo braço o seu amigo Daniel. 
- O meu amigo Daniel é o melhor valsista da sala, incluindo-me eu próprio -disse ele a Júlia. 
E, voltando-se para Daniel, continuou: 
- D. Júlia é a melhor valsista desta sala, incluindo minha mana. 
Seguiu-se uma valsa entre Daniel e Júlia: era natural. 
A valsa foi realmente digna dos elogios que dos dous valsistas fizera Gabriel. 
Quando pararam Júlia estava extenuada. De fadiga ou comoção? Talvez de uma e outra cousa. O que é certo é que Daniel tanto valsava como falava ao ouvido de Júlia, palavras brandas, rápidas e incisivas. 
Ora, no fim da noite eis em resumo o que Daniel havia dito a Júlia e a Teresa. 
A Teresa: 
- Amo-a muito; é a única que trago em meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida, é o meu futuro, é o meu céu. Ame-me, ame-me! 
A Júlia: 
- Amo-a muito; é a única que trago no meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho, nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida; é o meu futuro, é o meu céu! Ame-me, ame-me! 
VIII 
Passaram-se alguns dias depois do baile. 
Nenhum acontecimento importante mudou a ordem antiga das cousas; as duas amigas comunicaram-se com frequência; as cartas iam e vinham com presteza, e a afeição fraternal parecia não ter sofrido em cousa alguma. 
Uma só cousa se notava na correspondência de Júlia e de Teresa; era um silêncio obstinado a respeito de Daniel. Esse silêncio, depois dos acontecimentos e do diálogo dos dous no baile, era natural; mas acaso a declaração de Daniel influiria no ânimo? 
Vamos ver o que foi. 
IX 
Daniel continuava a passar todas as tardes como anteriormente em
Catumbi e nos
Cajueiros. À hora do costume já as duas moças se achavam à janela.
Como explicar o procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou uma só? 
O amor, para Daniel, era simplesmente um objeto de distração; ele não amava nem a Júlia, nem a Teresa; divertia-se com ambas, por mero passatempo. 
Em tão má hora o fez, ou antes com toda a perfídia, que as duas boas moças declararam-se apaixonadas por ele. 
E esta paixão foi a nuvem que cobriu o céu de amizade, até então puro e radiante. 
Os dias correram do modo por que os leitores adivinham. O silêncio recíproco a respeito de Daniel deu a entender a Júlia e a Teresa que eram rivais uma da outra. 
Isto devia naturalmente trazer uma explicação. Foi o que aconteceu; as duas,
um dia que se achavam juntas, levaram naturalmente a conversa para o objeto comum.
Ambas declararam que amavam Daniel e comunicaram a esperança que este lhes dava. Como da primeira vez, chegaram ao conhecimento de que ambas eram enganadas. As cartas que ambas recebiam de Daniel foram igualmente comunicadas. A nova traição do rapaz foi descoberta. 
No meio, porém, destas rivalidades e das nuvens que começavam a ensombrar o quadro da afeição fraternal de Júlia e de Teresa, o coração foi readquirindo os seus direitos e pôde contrabalançar o amor. 
O que é certo é que um mês depois Júlia e Teresa recebiam uma da outra uma carta de desistência. 
Eis a carta de Teresa a Júlia:
Minha querida Júlia
Sei quanto sofres, sei como amas Daniel. Compreendo esse amor por ele, visto que o tenho igualmente. Mas eu posso sofrer os golpes da fatalidade e reerguer-me sã e salva. Duvido que o possas tu. Sente-se que a tua vida depende desse amor.
Assim, pois, vou fazer o que meu coração me dita. É um dever de amizade leal, como convém a quem está sincera em tudo isto.
Amo Daniel, é verdade, mas entre o meu e o teu sacrifício, prefiro o meu. Sufocarei a minha paixão. Ama-o tu sozinha e sê feliz.
Procedendo assim, estou longe de crer que mereça louvores ou agradecimentos; faço o dever. Salvar uma amiga de uma dor grave é um dever de amizade. Se a amizade não servisse para estas grandes ocasiões seria uma cousa fácil.
Quando o céu nos fez tão iguais, e o mesmo sentimento nos ligou, foi para que nos mostrássemos assim. Se hoje faço isto, amanhã farás outra cousa por mim, e teremos ambas merecido o nome de verdadeiramente amigas.
Sossega, pois, o teu coração; alimenta as tuas esperanças. Ama Daniel. Sê feliz e crê-me tua amiga,
Teresa.
Quando Júlia lia esta carta de Teresa, Teresa lia a seguinte carta de Júlia:
Minha Teresa
Daniel é um tanto bandoleiro; mas ele pode ser firme e fiel, se um coração verdadeiramente apaixonado o contiver. Qualquer de nós lhe daria esse coração, mas de nós ambas só tu pareces mais fraca, mais exclusivamente apaixonada. Eu o estou bastante, mas agradeço restar-me um pouco de razão para ver que devo fazer um sacrifício em teu favor.
A que chegaríamos se eu insistisse em conservar o amor de Daniel? A uma luta estéril, sem resultado, a não ser o de perdermos ambas a tranquilidade do coração e a felicidade da nossa vida. Que isso me sucedesse a mim, pouco me importaria, mas tu é que não deves sofrer, e eu lastimaria do fundo d´alma tão funesto resultado.
O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a
                Deus que coroe os teus votos.
Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a ideia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.
Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua,
Júlia.
X 
Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma cousa, produziram idênticos efeitos. 
Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra. 
Novas cartas e novas recusas da parte de ambas. 
E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas
deram de tábua ao gamenho Daniel.
A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas. 
- Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo. 
- Nem eu, o teu. 
- Por que não? 
- Por que não? 
- Aceita. 
- Aceita tu. 
E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria mais generosa que a outra. 
Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recuando por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio
que é sempre mau correr a duas lebres.
Mas falta à nossa história o epílogo e moralidade. 
***
Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas: 
Minha Júlia
Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.
A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.
Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.
Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.
Adeus, abençoa o futuro de tua amiga,
Teresa.
Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas: 
Minha Teresa
Estimo do fundo d´alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.
Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma cousa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.
Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.
Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propícia e idêntica que o céu nos deparou.
Agradeçamos a
                Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua,
Júlia.
XI 
Na noite do dia seguinte reuniram-se todos, não em casa de Teresa, mas em casa de Júlia, nos
Cajueiros. Estavam as duas e os dous noivos. Gabriel acompanhara a família à visita.
As duas moças comunicaram os seus projetos de felicidade. Nenhuma delas censurou à outra o silêncio que guardara até a hora do pedido em casamento, porque ambas tinham praticado a mesma cousa. 
Ora, Gabriel, que soubera por sua irmã Teresa da recusa de ambas relativamente a Daniel,
aproveitou uma ocasião que as acompanhou à janela e disse-lhes:
- Não há nada como a amizade. Admiro cada vez mais o ato de generosidade que ambas praticaram a respeito de Daniel. 
- Ah! Sabe! - disse Júlia. 
- Sei. 
- Fui eu quem lho disse - acrescentou Teresa. 
- Mas - continuou Gabriel -, são tão felizes que o céu lhes deparou logo um coração para responder aos seus. 
- É verdade - disseram as duas. 
Gabriel olhou para ambas, e depois, à meia voz, com intenção disse: 
- Com a singularidade de que a carta de desistência do coração do primeiro foi escrita depois do primeiro olhar amoroso do segundo. 
As duas moças coraram e esconderam o rosto. 
Tinham de ficar vexadas. 
Caía assim o véu que encobria o sacrifício e via-se que ambas haviam praticado o sacrifício no interesse pessoal; ou por outra: largavam um pássaro tendo outro em mão. 
Mas as duas moças casaram-se e ficaram tão amigas como antes. Não sei se no correr dos tempos houve sacrifícios semelhantes.

Corpora

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